O tempo segue sem recuo. No sentido coletivo, o ano que se vai foi, certamente, dos mais desafiadores: a pandemia persistiu e continuou deixando marcas incontornáveis. A insegurança insistiu em nos desassossegar.
No entanto, é tempo de renovação, do levante depois da perda, de alguma aposta, de avançar e enfrentar perguntas essenciais: como lidar com as sequelas físicas e psíquicas daquilo que nos atravessou? Como lidar com a angústia e criar espaços por onde possamos avançar?
O luto coloca o mundo em movimento e nos convoca, mas é preciso que cada sujeito possa colocar aí algo de sua própria loucura e estranheza. Pessoalmente senti medo, o tremor da incerteza, a finitude. Fora do campo pessoal, senti também o desespero de muitos. Defrontando-nos com limites e contradições, encontramos linhas de fuga. Diante do desamparo e da voragem da vida que conduz à morte, sentimos a ansiedade que contrapõe outro tempo, já morto – um “tempo que não passa”, na expressão de J. Pontalis.
Contra a solidão e o desamparo, o psiquismo é um trabalho permanente de estabelecimento de laços que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo. A depressão é o rompimento dessa rede de sentido e amparo, que deixa entrever o vazio que nos cerca. É o momento do enfrentamento insuportável com a verdade. Embora talvez haja quem consiga evitá-lo a vida toda, a pandemia – combinada com o descalabro e inimaginável cenário político – trata de nos lembrar disso.
No entanto, temos a possibilidade simbólica de um recomeço. Temos, ainda, gestos fundamentais que nos fazem levantar.
Apesar de toda a dor, os gestos sobrevivem. A força do gesto movido pelo desejo inscreve uma história e consegue perfurar a melancolia. Como em Jean Luc-Nancy, é preciso ouvir o que ressoa para além da dor, escutar “o singular de um grito, de um apelo ou de um canto, compreender o que soa de uma garganta humana sem ser linguagem, o que sai de uma goela animal ou de um instrumento qualquer que ele seja, até mesmo o vento nas ramagens: o murmúrio ao qual damos ou prestamos ouvidos”. É nesse limiar à borda do sentido e em uma escuta aguda da angústia e da dor que podemos inventar uma nova língua e avançar.
Aqui quero ressaltar que a importância dada por Sigmund Freud “à arte como uma espécie de testemunha do inconsciente” é fundamental. Freud era fascinado pela arqueologia em geral, e por Pompéia, em particular, por causa da analogia entre o destino da cidade romana (a destruição pela erupção do vulcão Vesúvio – o soterramento – e seu posterior descobrimento – a escavação) e o raciocínio psicanalítico: o soterramento pelo recalcamento e a escavação pela análise. Segundo Freud, “o trabalho de reconstrução do analista assemelha-se muito à escavação, feita pelo arqueólogo de alguma morada que foi destruída e soterrada, ou de algum antigo edifício”. No entanto, “aquilo com que o analista trabalha não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo”.
Pompéia se oferece como objeto de um mundo morto. O que temos, por outro lado, é a possibilidade de avançar: temos a utopia. Ao lembrar da “página em branco” citada por Giorgio Agamben em um belo ensaio sobre contingência, o psicanalista Edson Luiz André de Sousa aborda brilhantemente a potência utópica, recordando que Aristóteles comparou o entendimento ou o pensamento em sua força com uma tabuleta onde não há nada escrito: “Utopia como causa, como causa de desejo. Nesta tradição de inspiração utópica, o enigma não é o pensamento, mas a potência do pensar, não propriamente a escrita, mas a folha em branco”.
Que 2022 seja de aposta e reconstrução, de refundação de um solo comum, de gestos sustentados pelo desejo, de insubmissão radical. Um ano melhor para todos nós.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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