Por Ana Maura Tomesani*
O Brasil é um país cujas taxas de criminalidade violenta estão entre as maiores do mundo. De acordo com o último relatório do UNODC de 2019, escritório da ONU para Drogas e Crimes, a taxa de homicídios do Brasil é de 30,5 para cada 100 mil pessoas, a segunda maior da América do Sul. Contudo, a taxa de esclarecimento destes crimes é baixa. Segundo levantamento do Instituto Sou da Paz de 2020, a taxa média de esclarecimento de homicídios no Brasil é de 33% entre os estados que efetivamente disponibilizam este dado. Contudo, se estados como o DF podem se orgulhar de esclarecerem 90% dos casos de homicídios, Rio de Janeiro não esclarece mais do que 11% dos casos ocorridos em seu território. Portanto, estas vítimas nem sempre podem contar com a Justiça. Mas elas deveriam, no mínimo, poder contar com um serviço de acolhimento e apoio para saber o que fazer nestas situações e conhecer seus direitos enquanto vítimas.
O atendimento às vítimas de crimes encontra amparo na Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e do Abuso de Poder, emitida na Assembleia-Geral das Nações Unidas de 1985. Europa e Estados Unidos criaram ainda arcabouços legais específicos para que países membros (no caso da Europa) e Estados (no caso dos EUA) fomentassem estruturas de amparo formadas por entidades públicas ou organizações da sociedade civil financiadas com recursos públicos para o atendimento às vítimas de crime. A Convenção Europeia para a Compensação de Vítimas de Crimes Violentos de 1983 e Recomendações anexas constitui um interessante modelo de análise, bem como a lei dos direitos das vítimas de crime (Crime Victims’ Rights Act) de 2004 nos EUA, que conta com um fundo federal (Victims Fund) para programas de assistência e reparação voltados às vítimas de crimes violentos.
De acordo com o Victims Support Europe (VSE) e o National Center for Victims of Crime (NCVC) nos Estados Unidos, entidades de referência no apoio às vítimas de crime na Europa e nos EUA, o atendimento à vítima (que inclui familiares e dependentes de vítimas fatais, além de testemunhas oculares) consiste no suporte orientacional, psicológico e jurídico aos que sofreram algum delito. Inclui ainda o apoio adequado para que a vítima possa exercer seu direito de acompanhar todo o processo da justiça criminal referente ao delito do qual foi vítima, caso ela assim deseje.
O atendimento adequado à vítima neutraliza o desejo de vingança e o justiçamento, desejo este que a joga e/ou seus familiares próximos em uma espiral de rancor e medo. De acordo com a International Society for Traumatic Stress Studies, parte das vítimas de crime sofre estresse pós-traumático e apresenta sintomas que vão de irritabilidade à depressão – passando por ansiedade, pânico, problemas de relacionamento, de sono, alcoolismo, entre outros – dependendo da severidade do crime sofrido. A prestação de serviços de apoio faz com que a vítima se sinta acolhida e protegida, o que colabora para a suavização do trauma e reorientação do indivíduo no caminho da justiça, da reparação e da responsabilização. Não à toa o NCVC chama este processo de justiça paralela (parallel justice), pois ele deve correr em paralelo ao processo de justiça criminal e faz parte da prestação estatal obrigatória de justiça às vítimas. A Victims Support Europe informa que se este serviço chega às vítimas de maneira simples e rápida, ele é capaz de proporcionar alívio, qualidade de vida e empoderamento jurídico para a vítima.
No Brasil, o I Plano Nacional de Direitos Humanos de 1996 previa a criação e funcionamento de centros de apoio às vítimas de crime nas áreas com maiores índices de violência. Estes centros ofereceriam serviços de assistência social, jurídica e psicológica às vítimas de crimes violentos, familiares e dependentes. Em 1999, o Ministério da Justiça fomentou nos estados a criação destes centros de apoio, visando à reestruturação moral, psíquica e social da vítima. Os planos estaduais de Direitos Humanos passaram então a incluir estes centros e vários deles floresceram no país.
Na esteira do Plano Nacional e do Plano Estadual de Direitos Humanos, surgiram em São Paulo os CRAVI (Centros de Referência e Apoio à Vítima), bem como o PROVITA (Programa de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas). É sabido que, depois da aprovação da Lei Maria da Penha, surgiram também muitas entidades, vinculadas ou não ao Estado, que acolhem mulheres vítimas de violência, o que pode ser verificado no recentemente lançado Mapa do Acolhimento. Vale destacar ainda o recente Projeto de Lei 3890/20, de autoria do deputado federal Rui Falcão, que institui o Estatuto da Vítima e está tramitando na Câmara dos Deputados.
A vítima de um crime, quando negligenciada pelo Estado, torna-se vítima pela segunda vez – o que o VSE chama de vitimização secundária e o NCVC de re-vitimização. Os centros de apoio às vítimas de crime buscam reduzir esta forma de vitimização, colaborando para a reconstrução da vida das vítimas e sua reintegração à sociedade. De acordo com o VSE, vítimas atendidas em tempo hábil e a contento procuram menos o serviço de saúde porque se adoentam menos, trabalham mais e melhor (se ausentam menos do trabalho) e têm produtividade superior àquelas vítimas que não tiveram qualquer tipo de atendimento por parte do Estado ou entidades assistenciais, independentemente de terem sido ou não indenizadas pelo agressor ou pelo Estado ou mesmo do agressor ter sido condenado.
Seria interessante, neste momento, conhecermos a situação dos CRAVI, já que há pouquíssima informação sobre estes centros nos sites oficiais. E verificar se a prestação de serviços disponibilizada por eles contempla a legislação nacional e internacional sobre o tema. Penso que iniciativas público-privadas seriam bem-vindas no sentido de conhecer e melhorar a situação destes centros. Além disso, é preciso incluir no rol de crimes atendidos por entidades competentes aqueles que não são considerados violentos, mas que podem igualmente causar trauma às vítimas, como assédio, ameaças, stalking e extorsões, por exemplo.
Deve-se ter em mente ainda que a emergência recente de vários mercados ilícitos como o de cigarros, agroquímicos, brinquedos, medicamentos e cosméticos, por exemplo, cria novas categorias de vítimas ainda invisíveis, todos os dias. É preciso olhar com lupa estes mercados e realizar uma busca ativa de suas vítimas para entendermos melhor as externalidades negativas de atividades econômicas ilegais. E esta é outra atividade que poderia contar com o apoio da iniciativa privada, sobretudo daquelas empresas que mais sofrem com a falsificação e/ou desvio de seus produtos. Apenas conhecendo a perversidade oculta destes mercados é que teremos condições de desenvolver legislação compatível com esta nova realidade.
* Ana Maura Tomesani é Doutora em Relações Internacionais (USP, 2019), integrante da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS), especialista da Rede A Ponte e pesquisadora do NUPRI – Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP. Faz parte do Grupo de Experts da Global Alliance Against Transnational Organized Crime. Foi coordenadora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e consultora do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para assuntos relacionados à segurança pública, participação social e qualidade dos dados. É atualmente colaboradora da Plataforma Laboratório Social e pesquisadora do Frameworks Institute.
Por __
Leia também

Mãe Bernadete amou e entregou tudo o que podia
Continue lendo...
Mulheres negras na luta pela cidadania no Brasil
Continue lendo...