As reais origens da carestia no Brasil – IREE

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As reais origens da carestia no Brasil

Guilherme Mello

Guilherme Mello
Economista e sociólogo



Assim como a maioria dos países do mundo, o ano de 2020 no Brasil será marcado por uma profunda recessão. Após cinco anos de depressão econômica, a queda prevista de 5% do PIB fará com que o PIB per capita brasileiro retorne aos patamares de 2010, o que torna o período atual uma verdadeira década perdida.

Esse cenário de retração econômica e redução da renda das famílias deveria contribuir para o controle dos preços, dado o recuo na demanda por bens e serviços. De fato, a expectativa do mercado financeiro (observada através do boletim FOCUS) é que o IPCA feche o ano próximo de 2,5%, no limite inferior da banda de variação da meta de 4%.

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Por outro lado, quem frequenta os mercados, feiras ou está construindo/reformando sua casa, percebe facilmente que os preços não estão “parados”. Na realidade, alguns itens fundamentais na alimentação do brasileiro têm apresentado uma elevação de preços bastante fora do usual. O arroz, o feijão, o milho, o óleo e o leite são algum dos itens presentes na mesa do brasileiro que tiveram aumento próximo ou superior a 20% em 2020.

No campo da construção civil, o cimento, o aço, o tijolo e os tubos de PVC também têm apresentado uma elevação rápida de preços, fazendo com que o índice de preços da construção civil (INCC-FGV) até agosto já tenha subido quase o dobro do IPCA esperado no ano, chegando a 4,88%.

Ao longo da história brasileira, marcada por graves períodos inflacionários, esse aumento do custo de vida ficou conhecido como “carestia”. Ele indica uma redução no poder de compra das classes menos favorecidas, com impactos sobre a segurança alimentar e o padrão de vida dos trabalhadores mais pobres.

As reais origens da carestia no Brasil

Variação de preços na cesta de consumo média de famílias com renda de até 2,5 salários mínimos acumula alta no ano

Mesmo que esse aumento do custo de vida não seja plenamente captado por indicadores como o IPCA, ele aparece de forma mais clara em outros índices inflacionários.O IPC-C1/FGV, que mede a variação de preços na cesta de consumo média de famílias com renda de até 2,5 salários mínimos, já acumula alta de 4,5% nos últimos doze meses, tendo acelerado nos meses de agosto e setembro de 2020.

Mas por que estamos atravessando um período de carestia em meio a uma profunda recessão?

A resposta para essa questão não é simples. Muitos analistas, de maneira precipitada, apontam para o auxílio emergencial, que elevou a renda dos extratos mais pobres da população e retirou momentaneamente 13 milhões de pessoas da linha da pobreza. Essa renda seria responsável por um aumento de demanda por alimentos, que teria pressionado o preço desses e de outros bens.

Essa conclusão é no mínimo incompleta, pois olha apenas para eventuais pressões de demanda, sem observar a estrutura de oferta e custos. A nova recessão provocada pela crise do coronavírus não é igual aquela observada em 2009 ou mesmo em 2015/16. Ela tem como característica uma paralisia da atividade produtiva em diversos setores, levando cadeias inteiras de fornecedores à falência, criando um cenário de escassez de alguns insumos e queda nos estoques, diante da incerteza sobre o ritmo da recuperação da atividade.

Não foi apenas no Brasil que as cadeias produtivas foram afetadas. No restante do mundo, houve uma conjugação entre quebra das cadeias e retomada forte da demanda, em particular da China (que deve crescer aproximadamente 5% em plena pandemia). Com isso, a demanda por alguns insumos subiu, elevando o preço internacional de diversas commodities. O IC-Br, índice de preços das commodities calculado pelo IBGE, apresentou alta de 32,7% no acumulado de doze meses até setembro de 2020, indicando que boa parte da inflação doméstica é “importada”.

Ao mesmo tempo, o aumento da aversão ao risco dos investidores internacionais em um cenário de rápida queda no diferencial de juros do Brasil em relação ao resto do mundo, gerou uma fuga de capitais recorde no Brasil, com saída de quase R$ 90 bilhões até o final de setembro. A decorrência desse processo foi a forte desvalorização do real, que se tornou a moeda com maior perda de valor no mundo no ano de 2020, acumulando desvalorização de quase 40% até o mês de outubro.

Esse aumento do custo dos insumos somado a desvalorização cambial teve impacto direto sobre os preços no atacado. O IGP-M/FGV, que sofre grande influência dos preços com cotação em dólar, já acumula alta de 20% nos últimos doze meses. Esse aumento de preços ainda não atingiu o varejo em sua totalidade devido ao cenário recessivo, que dificulta o repasse de custos para preços. No entanto, não será possível manter indefinidamente os preços do varejo controlados diante de uma aceleração tão forte dos preços no atacado, sob a pena de reduzir a margem das empresas e dos comerciantes.

Além destes fatores de custo, um dos elementos que ajuda a explicar a carestia foi o desmonte dos estoques reguladores e das políticas de incentivo à produção de alimentos. A redução dos estoques da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) e o desmonte e desfinanciamento dos instrumentos que incentivavam a produção de alimentos pelas pequenas propriedades (como o PAA, o PNAE e o Pronaf) contribuíram para o descontrole dos preços de alguns alimentos. Em desespero, o governo agora busca reduzir alíquotas de importação de alimentos que o Brasil é grande exportador, como soja e milho, ao invés de limitar a exportação desses produtos e garantir o abastecimento do mercado interno.

Atribuir a “culpa” da carestia ao aumento do consumo dos pobres devido ao auxílio emergencial é um “erro interessado”, de quem não quer enxergar os diversos elementos que contribuíram para a elevação dos preços, em particular aqueles que decorrem de erros do governo na gestão da taxa de câmbio e da política de segurança alimentar.

Com a redução no valor do auxílio emergencial em setembro (de R$ 600 para R$ 300) e sua virtual extinção em dezembro, o aumento do custo de vida dos mais pobres deverá contribuir decisivamente para o aumento da pobreza e da insegurança alimentar, que voltaram a assolar o país nos últimos anos. Tirar renda de quem mais precisa não irá solucionar o problema da carestia, mas irá agravar os problemas sociais.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Guilherme Mello

É economista e sociólogo, com mestrado em Economia Política pela PUC-SP e doutorado em Ciências Econômicas pela Unicamp. É professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAMP. Foi assessor econômico para a campanha de Fernando Haddad à Presidência da República em 2018.

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