As novas crises do audiovisual e sua força de resistência – IREE

Colunistas

As novas crises do audiovisual e sua força de resistência

Ana de Hollanda

Ana de Hollanda
Cantora, compositora e ex-Ministra da Cultura



Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), a indústria criativa é atualmente um dos setores mais transformadores da economia mundial em termos de geração de renda, criação de postos de trabalho e receitas de exportação. Pelas últimas estimativas mundiais, a indústria criativa gera 2.250 bilhões de dólares e 29,5 milhões de postos de trabalho.

O Brasil se alterna, periodicamente, entre períodos de vacas gordas e vacas magras no audiovisual, geralmente em decorrência das políticas públicas de ocasião.

O cinema nacional teve seus primórdios a partir dos anos 20 do século passado, com Humberto Mauro. Mas a indústria cinematográfica se firmou mesmo a partir da Cinédia, da Vera Cruz e da Atlântida, além dos filmes do Mazzaropi que os produzia, dirigia e neles atuava.

As novas crises do audiovisual e sua força de resistência

No início dos anos 60 despontou o Cinema Novo, consagrando diretores que conseguiram produzir clássicos com orçamentos mínimos.

No final dos anos 60 e durante a década de 70, surgiram produtoras independentes que lançaram filmes popularizados como Cinema Marginal, assim como a Pornochanchada.

Em setembro de 1969 foi criada a Empresa Brasileira de Filmes S.A – EMBRAFILME, como uma companhia de economia mista produtora e distribuidora de obras cinematográficas. Foi a grande responsável pelo boom do cinema nacional durante o período da ditadura militar, o que, apesar de soar um certo contrassenso, traduzia também a tática de aproximação e, se possível, cooptação da classe artística.

O mesmo se deu nessa época, por exemplo, com o Projeto Pixinguinha e o Mambembão, voltados para música popular e teatro. Em 1975, no auge da atuação da empresa, o Brasil chegou a ter 3.276 salas de cinema e um total de 275 milhões de ingressos vendidos. À medida que, por diversos motivos, o orçamento do órgão foi se encolhendo, veio a decadência até sua extinção pelo então presidente Collor, em 1990, junto com a extinção do próprio Ministério da Cultura.

Em 1993 o Presidente Itamar Franco sancionou a Lei do Audiovisual que, da mesma forma que a Lei Rouanet, vem a ser uma modalidade de incentivo fiscal que se dá através do abatimento no imposto de renda de pessoas físicas ou jurídicas que invistam na produção, coprodução ou distribuição de obras audiovisuais. Para tal, o proponente precisava ter seu projeto aprovado pelo Ministério da Cultura e, após a criação da ANCINE, pela própria.

Nos últimos anos esta lei, indispensável ao fomento da indústria do audiovisual, tem vivido períodos de insegurança, uma vez que sua vigência venceu em 2019, não foi renovada durante todo o ano de 2020 e só agora, em 2021 é que o Presidente a sancionou.

A Agência Nacional do Cinema- ANCINE, criada em 2001 pela Medida Provisória 2228-1 foi, junto com a Lei do Audiovisual, a grande responsável pela retomada da produção e circulação do cinema nacional aqui e no exterior. Uma das medidas renovadoras da lei é o artigo que cria a Cota de Tela: obrigando empresas exibidoras a incluírem em sua programação obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem, estabelecendo um número mínimo de dias que atendam à diversidade dos títulos. Ao mesmo tempo, limita a temporada de uma determinada obra na mesma sala de cinema.

Outro artigo revolucionário para o fomento foi o que cria a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional –CONDECINE, que incide sobre a produção, veiculação e licenciamento de obras cinematográficas e videofonográficas. O valor resultante da arrecadação da CONCECINE é destinado ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que se tornou o maior mecanismo de fomento ao audiovisual brasileiro, ao realizar investimentos em todos os elos da cadeia produtiva do setor.

Em minha gestão como Ministra, após uma forte campanha junto ao Congresso, conseguimos a aprovação da Lei nº 12.485/2011, também conhecida como Lei da TV Paga, que estabelece obrigatoriedade a todos os canais de TV por assinatura de veicular um mínimo de 3,30hs de conteúdo brasileiro semanalmente, em horário nobre, sendo a metade de produtora independente.

Antes da chegada da pandemia, que reduziu drasticamente o público em salas de cinema, registrou-se, ano a ano, um crescimento na produção e exibição de longas nacionais – 327 filmes nacionais em cartaz em 2019 – embora sempre muito aquém do número de importados, principalmente norte-americanos. Até esse período, a indústria audiovisual gerava cerca de 330 mil empregos, movimentava mais de R$ 20 bilhões por ano, rendia 1,67 % do PIB nacional, sendo que a cada R$1,00 investido, o retorno correspondia a R$2,60 em tributos.

A ANCINE conta em seus registros com 15.000 empresas ligadas ao audiovisual. A maior parte das produtoras são independentes, trabalham com baixo orçamento, contudo têm se destacado em festivais internacionais de todas as modalidades, que abrem as portas para a importação de nossos audiovisuais. Entretanto, a epidemia de Covid-19, com o fechamento das salas exibidoras, foi catastrófica para o mercado exibidor.

Paralelamente à pandemia, o governo atual tem provocado situações que só levam a uma insegurança generalizada, ao mesmo tempo em que seus responsáveis se negam a dialogar com os profissionais do setor, que conhecem profundamente os impasses provocados pelo exagero de burocratização, falta de segurança jurídica e institucional.

A ANCINE, por ser uma agência pública, sempre manteve uma autonomia e uma postura diferenciada em relação à legislação que rege o poder público. Anteriormente vinculada ao Ministério da Cultura e, com a extinção deste há dois anos, foi transferida para o Ministério da Cidadania para, em seguida, se ligar o Ministério do Turismo. No entanto, numa incongruência nunca justificada, o Conselho Superior de Cinema, responsável pela definição política do audiovisual, está atualmente abrigado na Casa Civil da Presidência.

Mesmo antes do golpe de 2016, havia uma queixa generalizada em relação à Agência, uma vez que não existia a menor transparência em relação às suas decisões. Em termos de comparação, vale lembrar uma portaria do antigo MinC que regulava editais próprios ou das instituições vinculadas, condicionando as seleções de projetos culturais à nomeação de comissões específicas para cada edital no qual incluía integrantes de notório saber no assunto, representantes de diferentes regiões do país, com integrantes do Ministério e da sociedade civil.

No entanto, o então presidente da ANCINE jamais permitiu a participação de representantes da sociedade civil, do MinC, até mesmo da Secretaria do Audiovisual-SAV no Comitê de Investimento do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA, responsável pela seleção dos projetos escolhidos para serem contemplados por um montante que na época girava em torno de 800 milhões de reais.

Fora o fato da seleção ser definida por alguns técnicos da agência e por representantes dos bancos que recolhiam e distribuíam a verba, ninguém tinha informações a respeito das pessoas responsáveis pela disputada seleção, muito menos seus critérios. Esse aporte que, na realidade, não é oriundo do tesouro, mas sim de uma taxa específica cobrada dos próprios produtores e exibidores de audiovisual, anualmente sofria contingenciamento.

Porém, há três anos os editais deixaram de acontecer, sem que se saiba se isso se dá por interferência do Ministério da Fazenda, se é um puro boicote ao cinema nacional, cujos produtores e diretores em grande parte não comungam as mesmas ideias do presidente da República, ou se dá por ambos motivos. De certa forma, o recado já foi dado pelo governante em uma declaração pública: “Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a ANCINE”. Deixando explícita a prática do dirigismo e censura em sua gestão.

Além de todos esses impasses, o grande gargalo econômico se encontra no setor de distribuição digital – Streaming como Netflix, Amazon Prime, HBO Max, Disney+, Globoplay, Quibi e outros – que carece de regulamentação como normalmente se dá nos países avançados, em especial na França que sempre fomentou a indústria audiovisual, mas também em outras nações europeias e asiáticas, com suas produções em franco crescimento, onde essas plataformas estão regulamentadas e com grande parte dos impostos cobrados destinados ao fomento do audiovisual.

Enquanto isso, aqui no Brasil o governo não está recolhendo sequer as taxas do CONDECINE, isto é, taxas previstas e reguladas pela MP que criou a própria ANCINE. Não há dúvidas de que a política de desmonte da indústria audiovisual está nos planos do governo atual. Mas a credibilidade alcançada por esse setor dentro e fora do país, aliada à desmoralização internacional do atual governo estão garantindo uma sobrevida ao setor.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Ana de Hollanda

É cantora, compositora e ex-Ministra da Cultura. Além do trabalho na música, com cinco discos gravados, Ana estudou artes cênicas, foi atriz, dramaturga e produtora cultural. Foi Coordenadora de Música do Centro Cultural São Paulo, Secretária de Cultura do Município de Osasco, Diretora do Centro de Música da Funarte e vice-Presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

Leia também