Há séculos e em contextos diferentes, a arte sempre reforçou e sugeriu transformações dos modos de organização social. Grande parte da história – lutas políticas, confrontos bélicos e movimentos revolucionários – foi abordado por artistas, como a guerra civil espanhola, os conflitos mundiais, as ditaduras da América Latina e os desastres humanitários em todos os continentes. De maneiras diversas, arte e política se entrelaçaram, em manifestações de disputa e conflito, fruto de guerras, extrema desigualdade social ou contradições próprias ao modo como o sistema político e econômico se organiza.
Jacques Rancière, filósofo francês que pensou também sobre as noções de arte e política, fez várias reflexões a respeito de questões como as relações de trabalho. Escrevendo e militando no campo da esquerda política desde o final da década de 1960, por anos centrou sua pesquisa na história da classe trabalhadora da França, se debruçou nas falas e gestos dos trabalhadores que lutavam por melhores condições profissionais e de vida, e buscou formular uma aproximação da política com a arte como possibilidade de invenção de novos mundos.
Em um de seus estudos, Rancière descreve como, na primeira metade do século passado, grupos de proletários franceses criavam para si atividades em que se engajavam nas noites que sucediam as estafantes jornadas de trabalho. Ali, sonhavam a possibilidade de outro mundo, do qual não estivessem excluídos, um mundo diverso que não se fazia pelo consenso, mas pela possibilidade de cada um colocar algo de seu: política no sentido agudo, onde todos os movimentos de corpos, toda palavra ou imagem pode abrir brechas nos consensos e convenções.
“A partilha do sensível”, conceito formulado por Rancière, é resultado de práticas da representação que constroem e reconstroem um sistema de evidências que define a existência de um espaço de vida comum, práticas que estabelecem e delimitam um espaço que é reconhecido e determinam como se dá sua divisão. Ao se fixar uma “partilha do sensível” define-se quem pode ou não fazer parte de determinado espaço, cria-se uma demarcação de quem é parte do comum da comunidade.
A arte pode e deve incidir nos acordos sociais e colocar à prova o que está estabelecido, subvertendo as coordenadas de valor. Segundo Rancière, através da política aquilo que antes era somente ruído indistinto pode afirmar-se como discurso. Cabe também à arte a emergência de novas partilhas do sensível, abrir fissuras em um conjunto de questões e tornar audíveis as vozes silenciadas.
A partir do entendimento da dimensão estética da política, cravada na possibilidade de se refazer uma partilha do sensível e abrigar outras imagens e pactos, podemos incluir também as tão desiguais relações de trabalho. Diante das recentes notícias estarrecedoras de pessoas em situação análoga à escravidão em vinícolas do sul do país, podemos pensar no significado brutal do que se delineia aí: para alguns o prazer – o vinho, a possibilidade da festa – e, para outros, a tortura, a impossibilidade de qualquer acesso ao que se produz com as próprias mãos.
Se há uma tarefa ética da psicanálise, há também a da arte. Aos trabalhadores da cultura – artistas que reinventam o mundo com as próprias mãos – não é permitido esquivar o olhar: do horror deve-se extrair algo. Não se trata de uma eficácia da arte, mas de fazer reverberar novas configurações do visível e do dizível, desassossegar e interrogar incluindo a dimensão do sujeito que reorganiza simbolicamente a vida e os pactos de justiça.
Se a psicanálise, com seu trabalho de ficção que reorganiza as coordenadas vigentes, pode operar no tecido do sensível sustentando um lugar heterogêneo, mudando demarcações e deslocando lugares, é preciso pensar também em como é possível, numa clínica além da proteção dos consultórios, uma escuta que possa fazer e refazer conexões entre aspectos diversos do mundo, introduzindo novas maneiras de pensar.
É possível encetar um debate sobre a autonomia no trabalho – no sistema da arte, por exemplo – mas sem esquecer que há uma imensa parcela da população sem possibilidades de criar novos significados, a quem foi negado o direito de sonhar e a quem resta apenas a subsistência. Se a arte é capaz de impactar vários âmbitos da vida e promover mudanças ao reconfigurar conjuntos de possibilidades e arranjos, como não incluir aí as relações de trabalho tão fundamentais para entendermos o abismo que temos a enfrentar? Como incluir, na invenção aberta pela arte e pela psicanálise, as pessoas despossuídas, subalternas e escravizadas? Como ser contemporâneo de questões que acossam e interrogam nossa própria condição humana?
Para Giorgio Agamben, ser contemporâneo é manter fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. “Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho das trevas que provém de seu tempo”, afirma o filósofo, que olha o mundo com desconfiança e sustentando o desvio e o dissenso. Cabe-nos conduzir os discursos da arte e da psicanálise aos confins de todas essas questões e nos perguntarmos como essas escutas-narrativas podem fazer vibrar os ritmos da insurgência das vidas invisibilizadas não só pela exclusão econômica, mas também pela privação simbólica e material.
Devemos convocar o simbólico para, a partir do arcabouço legal, reordenar a imagem e a representação, reconfigurando ideológica e conceitualmente a sociedade. Trata-se de uma reparação mínima para que possamos sedimentar a dimensão da experiência para todos, ainda que cada um possua sua singular maneira de narrar essa experiência. Quando a narração se separa do corpo, a experiência se separa de seu sentido. É preciso resgatar o lugar abandonado desses corpos que não podem usufruir de qualquer dimensão de prazer ou dignidade no trabalho e na vida. Não há subjetividade e nem poderá ocorrer alguma guinada radicalmente singular sem o compromisso ético com a reparação, um caminho que deve ser aberto também por críticos da cultura, artistas, psicanalistas, historiadores e intelectuais.
A arte e a psicanálise podem contribuir ativa e decisivamente para a prática da política da diferença, para além das relações de trabalho já postas, expandindo a dimensão do sonho – da loucura, da bruxaria, da festa, da literatura popular – e das estratégias do cotidiano, buscando o detalhe, o excepcional e os vestígios daquilo que se opõe à dita normalidade. À maneira pensada por Rancière, podemos reconhecer as trevas do nosso tempo e perfurar a máquina de moer sensibilidades imposta de forma selvagem pelo capitalismo.
Que todos possamos beber desse vinho.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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