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Afinidades brasileiro-moçambicanas

Gustavo Buttes

Gustavo Buttes
Diplomata



Se não tivesse falecido há três meses, de forma um tanto inesperada, meu pai completaria 83 anos de idade no último dia 1o de fevereiro. Ele me legou, entre outros vícios e virtudes, o gosto pela música popular brasileira, e mais particularmente o samba tradicional. Infelizmente, não herdei dele a mesma cadência musical, noção rítmica, ouvidos apurados, qualidade de timbre, afinação vocal…

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Logo ao chegar a Maputo (Moçambique), aonde vim trabalhar a serviço do governo brasileiro, no começo de 2019, deparei-me com uma cena artística surpreendentemente dinâmica. Mostras de arte, espetáculos de dança e teatrais, concertos musicais e atividades literárias, por exemplo, preenchiam semanalmente a intensa programação dos diversos espaços culturais espalhados pela cidade e entorno. Entre eles, destaca-se o Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM), local mantido pelo Itamaraty há mais de 30 anos e situado em um elegante casarão na região da Baixa.

Com a missão de promoção da cultura brasileira – e também moçambicana e, em sentido mais amplo, africana, já que manifestações artísticas não reconhecem fronteiras -, por lá marcaram presença nomes da estatura de Gilberto Gil e Lázaro Ramos.

Milhares de pessoas, em sua maioria moçambicana, circulam anualmente pela biblioteca João Guimarães Rosa, o auditório Vinícius de Moraes e as galerias Cândido Portinari e Djanira. Esse lugar de convívio privilegiado veio conferir indubitavelmente “uma dimensão concreta ao projeto de integração cultural afrobrasileira e interafricana”.

Achei curioso o fato de os moçambicanos estarem em frequente contato com notícias do Brasil e assistirem a inúmeros programas brasileiros, inclusive as famosas telenovelas, nos principais canais de televisão locais. Com uma nota de pesar no semblante, uma moçambicana próxima veio outro dia questionar-me se era verdade que o Gugu havia morrido…

Esse contato intenso, somado às afinidades históricas e linguísticas, faz com que os moçambicanos tenham forte identidade cultural com o Brasil. A música tem um papel de relevo nesse panorama (Djavan, Maria Bethânia e Yamandu Costa apresentaram-se no país recentemente), mas os vínculos afetivos perpassam também a literatura, o cinema, o teatro, as artes plásticas e a dança. Por meio da cultura, o Brasil dispõe de importante instrumento político e de indução de admiração e respeito em Moçambique.

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Nas dependências do CCBM, junto com amigos brasileiros e moçambicanos, começamos a organizar frequentes rodas de samba, acompanhadas de feijoada e comida de boteco e regadas a caipirinha e 2M, a cerveja mais apreciada no país. A atividade, que nasceu como uma “brincadeira” de músicos amadores, ganhou volume e teve excelente receptividade por parte da comunidade local e de expatriados.

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No último mês de dezembro, de regresso de uma viagem de férias a praias desertas ao norte, passei pela localidade de Maxixe, que dista cerca de 500 quilômetros de Maputo. Nascido como um pequeno povoado ribeirinho, de pescadores e agricultores, o vilarejo desenvolveu-se em função da cidade de Inhambane, mais importante, capital da província de mesmo nome.

Em décadas recentes, Maxixe experimentou um acelerado processo de urbanização e crescimento econômico, devido em grande medida à revitalização da Estrada Nacional no 1, rodovia que tangencia a extensa – e paradisíaca – costa do país.

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Alguns anos atrás, antes mesmo de saber que um dia moraria no continente africano, resolvi retomar leituras historiográficas sobre o fenômeno da escravidão, tendo como principal referência o livro Atlas of the Transatlantic Slave Trade, de David Eltis e David Richardson, adquirido em breve passagem por Londres. Esse interesse levou-me a contatar um amigo que trabalha no Museu Afro Brasil, em São Paulo, em busca de uma bibliografia mais atualizada sobre o tema, que fosse além do conhecido conjunto de textos – de leitura obrigatória – para prestar o concurso de ingresso à carreira diplomática.

Foi nesse contexto que me deparei com a história do nigeriano Gustavus Vassa, cuja vida e obra foram objeto de um interessante capítulo do clássico livro Navio Negreiro, de Marcus Rediker, professor emérito da Universidade de Pittsburgh.

Nascido em 1745, em um povoado agrícola na região central do antigo reino do Benin (atual Nigéria), Gustavus Vassa foi raptado ainda menino, junto de uma de suas irmãs mais velhas, de quem foi separado logo em seguida, e passou a ser tratado como mercadoria por sucessivos traficantes africanos. Após uma longa travessia “rumo à esquerda do sol nascente”, chegou ao porto de onde embarcaria para a primeira de muitas jornadas marítimas: o escravo viria a trabalhar como marujo de alto-mar, até conseguir comprar sua liberdade, aos 21 anos. Ao se deparar pela primeira vez com “homens brancos de olhares horríveis, rostos vermelhos e cabelos compridos”, pensou tratarem-se de “maus espíritos”, e não seres humanos.

Já alforriado, o jovem africano radicou-se na Inglaterra, onde lançou, em 1789, sua autobiografia, intitulada Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano. A obra foi a primeira a retratar os horrores do tráfico negreiro, desde o ponto de vista de um ex-escravo, com impressionante riqueza de detalhes. Por sua força moral e literária, serviu como propulsor do movimento abolicionista inglês, que poucos anos depois, em 1807, viu aprovado no Parlamento o Ato Contra o Comércio de Escravos, que prescrevia o tráfico em todas as terras da rainha.

Gustavus Vassa é na realidade o terceiro nome dado a Olaudah Equiano. Seu último proprietário achou engraçado, face à conversão do africano ao Calvinismo, dar a ele o mesmo nominativo de um rei sueco do século XVI, responsável pelo início do movimento de reforma protestante nesse país nórdico.

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O tango brasileiro teve papel fundamental no processo de constituição e consolidação do choro, talvez o primeiro gênero musical tipicamente brasileiro. Circulando por salões e casas de famílias cariocas, a arte de grandes artistas precursores, como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e tantos outros, emprestou os primeiros traços, em termos de harmonia, cadência e ritmo, à posterior caracterização da música popular brasileira, como percebida atualmente.

Imagino que, com a dinâmica exasperante das interações humanas, essa música instrumental tenha ganhado expressões próprias ao penetrar nas camadas mais populares do Rio de Janeiro de fins do século XIX e começos do XX, por meio de festas populares, carnavais e candomblés, a exemplo do mantido pela Tia Ciata. É nesse contexto que surge o samba-maxixe (ou “samba amaxixado”), primeiro estilo de samba urbano de que se tem registro.

Vale mencionar que Chiquinha Gonzaga, mulher negra, era neta de escrava liberta. Autora da primeira marcha carnavalesca com letra, a pianista “chorona” foi pioneira em muitos outros aspectos, tendo sido também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Como se não bastasse, participou ativamente dos movimentos abolicionista e republicano.

Um ano após a morte da Chiquinha, aos 88 anos de idade, Alexandre Gonçalvez Pinto, um carteiro até então desconhecido, lançou um livro de reminiscências sobre os “chorões do Rio de Janeiro desde 1870”, em que detalha:

“Chiquinha era de uma educação finíssima, de tratamento sublime. Na sua casa recebia todos com o maior carinho, sempre risonha e satisfeita. Quando pedia-se para tocar um choro, não se fazia de rogada, abria o piano e, com os seus dedos hábeis e admirados, principiava com um choro composto por ela, pois são inúmeros, e fazia a delícia dos que a escutavam.”

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Nas décadas de 1940 e 1950, a periferia de Lourenço Marques sacolejava ao som da marrabenta, novo ritmo dançante que emergia no cenário cultural urbano da capital colonial portuguesa, à revelia das imposições do governo colonial. O gênero, que viria a se estilizar ao longo da segunda metade do século XX, mistura influências da cultura tradicional do sul de Moçambique e elementos da música popular produzida na Europa e Estados Unidos à época, e que por aqui chegaram por meio de imigrantes que retornavam das minas de ouro e platina sul-africanas e dos poucos rádios disponíveis.

Alguns dos grandes nomes da música moçambicana foram mineiros, inclusive Fany Mpfumo, aclamado por muitas pessoas como o rei da marrabenta.

“Marrabenta” é um neologismo derivado da expressão “me arrebenta”, uma referência à intensidade com que o ritmo era dançado e, arrisco a dizer, à potência libertadora que existe nas artes, e na música especificamente, capaz de trazer feixes de esperança às vezes a uma população inteira. As associações culturais existentes nos subúrbios de Lourenço Marques foram os principais núcleos de difusão da nova sensação. Foi também em boa medida nesses subúrbios que o movimento independentista se organizou e ganhou corpo. O histórico bairro de Mafalala, de onde vem o primeiro presidente de Moçambique, não por acaso, é considerado o berço da marrabenta.

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Dona Ivone Lara faleceu em 2018, poucos dias após completar 96 anos de idade. Quando tinha apenas 12, já órfã de pai e mãe, compôs Tiê, Tiê, samba de partido alto que faz referência a seu passarinho de estimação, um “tiê-sangue”, típico da mata atlântica. No refrão, esse samba reza “oialá-oxá”, expressão que a própria dama do samba diz ter aprendido com sua avó moçambicana e que deriva provavelmente do árabe “insha’Allah” – ou “se Deus quiser”.

A região norte de Moçambique ainda é grandemente permeada pela cultura dos povos árabes e muçulmanos. Na realidade, o comércio marítimo que liga a costa oriental da África ao Golfo Pérsico e à costa do Gujarate (Índia) remonta à antiguidade. O desenvolvimento de entrepostos comerciais, com rotas bem definidas, em todo o contorno do oceano Índico, talvez ajude a explicar de que modo as engrenagens capitalistas lograram movimentar grandes contingentes de africanos por tão longas distâncias, dos territórios que hoje constituem Moçambique aos domínios árabes na Ásia, primeiro, e à Europa e Américas, em um segundo momento, e de maneira economicamente viável.

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Concordo com o poetinha, que o samba nasceu na Bahia, mas aprendi em pouco tempo que poderia ter sido em Moçambique, sem qualquer prejuízo a seu bonito percurso como manifestação sociocultural de um povo batalhador.

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Gostaria que meu pai viesse a Moçambique para conhecer o Índico, o CCBM, a marrabenta e Mafalala. Tinha inclusive bilhetes comprados, quando a pandemia eclodiu. Tenho certeza de que aqui se sentiria em casa, mesmo estando a mais de 8.000 quilômetros de distância de sua terra natal, às margens do rio Guaíba, no Rio Grande do Sul. Algumas semanas antes de falecer, talvez pressentindo o fim se aproximando, ele me mandou um vídeo de seu celular em que tocava timba e cantava uma música composta por Ataulfo Alves, um entre tantos poetas brasileiros descendentes de escravos africanos:

pintura do Heitor dos Prazeres

Pintura do Heitor dos Prazeres

“Eu daria tudo que eu tivesse

Pra voltar aos dias de criança

Eu não sei pra que que a gente cresce

Se não sai da gente essa lembrança”

 

Como meu pai e Ataulfo, tampouco eu sei a resposta a essa inquietação, que me perseguirá até a minha quarta-feira de cinzas.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Gustavo Buttes

É diplomata de carreira e serve atualmente na Embaixada do Brasil em Moçambique. É mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Escreve para o IREE Cultura de forma independente, seus artigos não refletem a opinião do Itamaraty.

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