um olhar a partir do esgoto
pode ser uma visão do mundo
a rebelião consiste em olhar uma rosa
até pulverizar os olhos
Alejandra Pizarnik
Numa tarde chuvosa de segunda-feira entrei novamente no cinema. A sala parecia preenchida de mistério e emoção, e o filme escolhido a dedo: o último trabalho de um cineasta que toca a imagem em sua imensidão.
Em “24 Frames” – um filme póstumo – Abbas Kiarostami expande o sentido da fotografia. O próprio diretor localiza a questão fulcral do filme: “Um dia, quando eu não tinha nada para fazer, comprei uma Yashica barata e saí pela natureza. Eu queria estar em contato com ela. Ao mesmo tempo, desejava compartilhar com os outros momentos agradáveis que testemunhei. É por isso que comecei a tirar fotografias. Para, de alguma maneira, eternizar esses momentos de paixão e dor”. Realizado nos três últimos anos de sua vida, o documentário é um projeto experimental. São 24 curtas-metragens que ampliam e deslocam o sentido inicial de imagens nascidas de pinturas ou fotografias. O cineasta disseca o mundo e seus curtas abrigam uma inquietude viva, uma dimensão inassimilável da existência guardada na beleza e na estranheza das coisas.
Nas imagens rearticuladas há um pressentimento sobre o destino e a contingência. É uma escrita perpétua como a operada por Agnès Varda em “Ulysse”: uma fotografia contém um filme que se revela somente 28 anos mais tarde, quando algo pôde se desdobrar ao infinito no campo da memória e da criação. Como Kiarostami, Varda se debruça sobre as imagens – praias e nuvens. Como Kiarostami, Varda é arqueóloga de sua própria memória, e exuma o filme do seu inconsciente fotográfico.
A questão da imagem guarda relação direta com a possibilidade de ler – ou reler – o mundo diante do excesso voraz e imaginário do contemporâneo. O cinema cria formas de adentrar na imagem e Kiarostami, com flashes de real, traz a possibilidade de salvaguardar a opacidade da imagem que não pode ser totalmente assimilada. Seu trabalho forja bordas para o inominável e refunda o mundo, à maneira de um poema de Herberto Helder: “Aquilo que se escreva conservará cegamente um tremor central, esse calafrio de ter olhado alguma vez o nosso rosto filmado no abismo do mundo”.
A construção de um corpo (íntimo ou coletivo) também se dá em um mecanismo de montagem como um modo de decodificar o mundo e, com um filme tão bonito e silencioso – uma maneira de retomar a inquietante estranheza da imagem – é possível aprender a língua dos pássaros e nos tornar fluentes em uma linguagem menos estridente. Se a neblina nunca se dissipa, precisamos aprender a ler o que acontece antes e depois do acontecimento.
Com uma forçada desaceleração atravessei a pandemia e pude olhar de maneira disruptiva para as pequenas coisas do cotidiano. Durante caminhadas por espaços abertos observei pássaros, folhas e outros detalhes e nuances de um lirismo que ficara soterrado pelo alvoroço dos dias.
Kiarostami ensina que ver é uma maneira de ler. E é uma construção. Tudo é passível de mergulho, depende de onde e como se olha a vida acontecendo. Para além da pasteurização, Kiarostami revela a imagem em estado de balbucio, a linguagem secreta do vento e o mistério inexorável de uma cena. Sua visão remete à imagem apresentada por Georges Didi-Huberman em “Sobrevivência dos Vagalumes”: “Trata-se nada mais nada menos, efetivamente, de repensar nosso próprio ‘princípio esperança’ através do modo como o outrora encontra o agora para formar um clarão, um brilho, uma constelação onde se libera alguma forma para nosso próprio futuro. Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes, rigorosamente falando, uma constelação? Afirmar isso a partir do minúsculo exemplo dos vaga-lumes é afirmar que em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração”.
Aqui se enodam uma crítica da imagem a partir do cinema, uma ética e uma estética, quiçá uma política no sentido mais agudo, uma maneira de olhar e reescrever o mundo que funda algo novo onde o sonho, o delírio, o fulgor, o sacriíficio e a beleza encontram espaço. Em Kiarostami tudo está ao rés do chão e, ao mesmo tempo, flutua. Retornar ao cinema com o seu olhar é se abrir às paisagens do mundo a partir de um assombroso manancial de beleza. Para Walter Benjamin, “só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional”.
“The Waste Land”, T. S. Eliot lança a pergunta: ousarei eu perturbar o universo? “24 Frames” é um ato poético em que Kiarostami dá testemunho do singular. Com imagens que se apresentam como absolutas e definitivas, Kiarostami insere a pulsação do fragmento para dilacerar um mapa pré-determinado e construir sua própria cartografia. Buscando imagens ainda não disponíveis, no excesso imaginário ele inverte lógicas de funcionamento e recupera uma dimensão da incerteza, da imaginação e da utopia. Seu cinema se configura nessa despedida – um último filme – como uma bordadura do vazio, uma maneira de circunscrever algo como uma travessia de estranha densidade poética, produzindo um curioso entrecruzamento da obra, não como um espelho da vida mas, antes, como o seu oposto: a vida como uma escritura. Sua presença em um sutil retorno ao mundo dentro de uma sala de cinema numa tarde chuvosa, me fez recordar da afirmação lacaniana: é sempre contra a corrente que a arte tenta operar novamente seu milagre.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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