A volta do ovo vendido em dúzia – IREE

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A volta do ovo vendido em dúzia

Bruno Brito

Bruno Brito
Pesquisador



Recentemente o Brasil redescobriu sua faceta rural. E não estou me referindo ao agro tech, ao agro pop ou ao agro lobby. Falo de um Brasil interiorano, nem sempre distante das capitais, mas que possui fortes ligações com elementos de uma cultura lastreada na vida campesina. Aliás, não é raro encontrar jovens pelo país que tiveram, duas ou três gerações atrás, entes ligados à terra ou a alguma prática ligada a esse universo, afinal de contas, em cidades pequenas, os comércios, serviços e ocupações também acabam orbitando na esfera dos sítios, chácaras e fazendas.

Os mercados municipais, comuns nesses municípios aos quais me refiro, são exemplos desses ambientes múltiplos que operam como verdadeiros shopping centers do homem comum. Neles, se compram panelas, chapéus, galinhas, farelos, enxadas, canivetes, botinas, fumo, garapa, pastel e até remédios fitoterápicos. Nestes locais, diferentemente dos supermercados modernos, o ovo ainda é vendido em dúzia e não em 10, e isso é digno de nota.

Os dados indicam que as metrópoles brasileiras possuem um grande contingente de migrantes que saíram de cidades interioranas para tentar ganhar a vida na capital. Alguns saem para estudar e depois trabalhar, já outros saem para trabalhar e sobreviver. Sendo assim, podemos concluir que grande parte da população brasileira tem algum vínculo com o interior e que os centros urbanos, como entendemos hoje, são fenômenos relativamente recentes.

É impressionante ler, por exemplo, relatos e registros da cidade de São Paulo até o começo do século XX, às vezes é até difícil acreditar que se trata do mesmo lugar. Algumas fotos da década de 1910, do italiano Vincenzo Pastore, mostram o Mercado dos Caipiras, hoje atual Mercado Municipal, situado na Rua Cantareira, às margens do Rio Tamanduateí. O mercado consistia na reunião de uma série de homens e mulheres que incrivelmente se deslocavam a pé de fazendas como a atual região de Santana ou Pinheiros, a fim de comercializar e trocar suas mercadorias.

Outro bom exemplo que ilustra este cenário de 150 anos atrás são as pinturas de Almeida Júnior, hoje no acervo da Pinacoteca de São Paulo. São registros de uma vida rural paulista na segunda metade do século XIX, algumas já da véspera da Proclamação da República, como a conhecida “O Violeiro”, de 1899. Chamo a atenção para o fato de como as cenas retratadas pelo pintor ituano são ligeiramente fáceis de se avistar ainda hoje no interior brasileiro. No Vale do Paraíba e no Sul de Minas Gerais, por exemplo, é significativo o número de pessoas que ainda vivem em casas de taipa-de-mão, cozinham e tomam banho à lenha e que são quase autossuficientes do ponto de vista alimentar.

Parece lícito dizer que o Brasil conheceu a modernidade sem antes ter passado por estágios preliminares de desenvolvimento. O fenômeno descrito acima, de uma geração que conviveu com familiares fortemente ligados a um passado agrário, é um dos sintomas que nos confirma tal afirmação. Há cinquenta ou sessenta anos atrás, nossos pais e avós ainda vivenciavam cidades analógicas, ruas de terra, matadouros urbanos de animais e brincadeiras de rua.

Hoje temos uma geração que já nasceu na era do smartphone, dos aplicativos de delivery e que, muitas vezes, não sabe que a carne “suína” porcionada na bandeja de isopor um dia já foi um porco de verdade, vivo. Concomitantemente às contradições listadas e o fato de as gerações estarem vivendo simultaneamente, a pandemia acelerou outro processo que já estava em curso: o do êxodo urbano.

O descontentamento com a vida nos grandes centros urbanos já motivava algumas pessoas a “largarem tudo para viver da terra”, como descrevem as manchetes nas revistas e blogs pela internet. Acontece que, desde março de 2020, quando a pandemia chegou no Brasil, a procura por imóveis no interior cresceu e nas metrópoles caiu.

Famílias que tinham casas de veraneio trataram de fazer sua mudança para o litoral, para o sítio ou para a montanha e, então, realizar a quarentena sem data para acabar. Já outros, que não tinham posses, buscaram casas de aluguel ou mesmo imóveis temporários encontrados em aplicativos e sites. Há também uma parcela de pessoas que simplesmente retornou para a casa dos familiares no interior, seja no perímetro urbano ou no rural. Neste momento, as pessoas redescobriram uma realidade que havia adormecido na memória ou que foi solapada com a vida contemporânea na cidade grande.

Cidades gentis, pessoas amistosas, preços honestos e valores humanos: muitas das vezes esse é o cenário encontrado fora de cidades como São Paulo. Não quero parecer ingênuo ou romântico demais, há sempre exceções e qualquer lugar sofre com defeitos e enfrenta desafios, ainda mais se tratando de um país desigual como o Brasil. A questão é que nas grandes cidades a desigualdade social é mais escancarada ou, pelo menos, acentuada e normalizada. Os contrastes urbanísticos, econômicos e sanitários são facilmente observáveis num deslocamento de poucos quilômetros ou metros, como é o caso da famosa fotografia de Tuca Vieira, que retrata a favela de Paraisópolis ao lado de um prédio dotado de andares com piscinas individuais no Morumbi.

A retomada para o interior coloca em cheque a vida agitada e custosa das metrópoles. O discurso vigente que dizia se tratar de locais no qual moram oportunidades e fontes de dinheiro enfraquece no momento em que o trabalho se torna remoto. De uma hora pra outra podemos estar onde quisermos e para isso já cunharam até uma nomenclatura: nomadismo digital. Já os que decidem se aventurar no campo são os chamados neorrurais.

Geralmente graduados, reconhecidos profissionalmente, dotados de repertório e até mesmo com experiência internacional, como bem analisou Elaine de Azevedo em seu artigo Neorrurais: os imigrantes da utopia, publicado recentemente no Le Monde Diplomatique, estes indivíduos passam a fazer parte do cotidiano de cidades pacatas que, até então, eram constituídas, sobretudo, de pessoas locais. A chegada da “gente de fora” traz consigo benefícios como expertises inexistentes no lugar, comunicabilidade e interlocução com centros consumidores e, claro, desejo de mudança, afinal, grande parte foi motivada por querer uma vida melhor. Além disso, são novos consumidores em potencial, muitas vezes com poder aquisitivo superior ao dos moradores locais e que não abrem mão de produtos e serviços de qualidade, estimulando assim o desenvolvimento das ofertas ali preexistentes.

Se por conta da pandemia as grandes cidades mudaram repentinamente de feição, com as pequenas não foi diferente. Basta olhar os carros que agora circulam nesses municípios de pequeno porte e que geralmente são de interesse turístico: são veículos grandes, importados, tracionados e lustrados.

Dotados de condição e vontade de consumir, a chegada desse novo contingente de moradores e nômades contemporâneos acaba resultando na transformação desses locais, mas nem sempre de forma saudável. Além do mais, há uma discussão importante com relação à especulação imobiliária ocasionada pela aparição de novos investidores que compram glebas para montar condomínios “rurais ecológicos” ou mesmo vilas de poucas casas, fazendo o preço da terra subir, alterando a paisagem e também as dinâmicas locais. Processo que hoje entendemos por gentrificação.

É neste momento que o comerciante local percebe que, na verdade, o forasteiro quer vivenciar uma realidade diferente da dele, citadina. Ele quer tomar o leite que saiu da teta da vaca, quer comer o ovo da galinha caipira, quer comer a broa de fubá da Dona Fulana e até mesmo experimentar a famosa farofa de formiga, herança indígena da gente. E fazem isto com razão, afinal, nada melhor do que comer comida de verdade!

O curioso é que quando isso acontece, a padaria é reformada, o mercadinho muda de placa, o restaurante adapta o nome e até o vocabulário das pessoas se estrangeiriza. Nesse momento surgem termos como gourmet, farm to table, pet friendly, bowl e day use. Paradoxalmente, estes negócios locais, muitas vezes dotados de narrativas familiares e tradicionais, passam a buscar falar a mesma língua dos novos consumidores, cidadãos do mundo.

Quando não ocorrem os anglicismos, ocorre uma folclorização do dialeto local e para isso vou citar alguns exemplos do contexto cultural caipira: mió, procês, arraiá, bão e cumpadi. – ou seja, passam a escrever como se fala a fim de tornar aquilo pitoresco ou engraçado. Há, também, um uso generalizado de cores, tecidos de chita, fitas de cetim, santinhos e artesanatos de origem duvidosa. Códigos visuais que nos transportem para uma certa ideia de brasilidade. Sim, de alguma forma estes elementos estão no imaginário doméstico brasileiro, mas não de forma cênica ou caricata, como ocorrem nos comércios de beira de estrada e nas vendinhas de praça.

Se, por um lado, as cidades tentam vestir uma fantasia regionalista, por outro, elas também passam a buscar uma estética do hemisfério norte, como curiosamente ocorreu nos municípios da Serra da Mantiqueira: sorveterias finlandesas, cervejarias germânicas, trattorias italianas, casas nórdicas e bistrôs franceses, para citar alguns exemplos.

E o mais preocupante disso tudo é que toda essa profusão de referências eurocêntricas passa a se misturar com conceitos e storytellings regionais. Afinal de contas, agora ser local e ser rural é hype. Hoje em dia, não há nada mais contemporâneo do que viver como antigamente. Caipira é slow living, pau-a-pique é bioarquitetura, mato virou PANC e por aí vai.

Reconheço que é uma tarefa difícil, mas precisamos aceitar que a cultura é dinâmica e está em constante transformação. Ela está sempre buscando formas de se manter viva, mesmo que adotando práticas estranhas a ela, como o uso de outros idiomas ou de novas abordagens estéticas.

Numa discussão calorosa como essa, terá sempre um entusiasta que irá defender a quantidade de novos empregos gerados e as oportunidades de trabalho para a população. E com razão, isso é, sim, algo a se louvar. Mas não seriam estes empregos o velho ciclo vicioso entre patrões e empregados? Empreendedores e assalariados? O habitante local, será sempre – e unicamente – destinado à mão de obra braçal e à execução?

Geralmente estes indivíduos moram nas periferias da cidade e não usufruem do tal “desenvolvimento” defendido pelos entusiastas, pelo contrário: muitas vezes sofrem com os reflexos negativos causados pelo crescimento desordenado do turismo, como é o caso de Paraty, Campos do Jordão, Angra dos Reis e de outras tantas cidades que vivenciaram o assédio momentâneo e agora caminham para a decadência e esgarçamento. Fatalmente, o turismo e o interesse pelas pequenas cidades também traz consigo a marginalidade, a desigualdade social, a poluição e a descaracterização da cultura local.

 

Após esse prazo, a festa termina e esses grandes bibelôs fenecem: as fachadas descascam, a chuva e a fuligem traçam seus sulcos, o estilo sai da moda, o ordenamento primitivo desaparece sob as demolições exigidas… (Lévi-Strauss in Tristes Trópicos)

 

É nesse complexo emaranhado de realidades e narrativas que mora o desafio das cidades interioranas redescobertas recentemente: o de encontrar a equação que as façam se desenvolver de maneira sustentável, respeitosa e perene. Cidades que, por serem locais, se tornam universais, e não o contrário.

Definitivamente precisamos encontrar um modelo eficiente de emancipação desses locais e das pessoas que os constituem. A corrida está em curso e a disputa com os grandes é acirrada. De um lado está a população sem recursos ou condições, mas dotada da essência daquele lugar. Do outro, estão os que podem investir, mas não detêm os códigos regionais.

Talvez essa disputa não faça sentido, já que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Por isso se faz mais coerente e oportuno o trabalho em conjunto, criando uma interlocução eficaz entre os atores locais, os investidores externos e o poder público. Planos de curto, médio e longo prazo são fundamentais para que esse processo obtenha sucesso e todos sejam beneficiados.

O que direi, portanto, pode parecer óbvio, mas a chave para o problema discutido aqui está na educação. Arrisco-me a dizer que ela é a frente de atuação com maior potencial de impacto positivo durante todo o processo, ad eternum. Não se desenvolve um lugar apenas construindo estradas, indústrias ou atrativos turísticos com sinalização pública. Investimentos destinados à educação básica, técnica e superior são fundamentais para a formatação de um plano de desenvolvimento eficaz. Mas também não se transforma um lugar apenas com escolas reformadas, jovens formados técnicos ou graduados sem campo de atuação. Para de fato desenvolver um local, é necessário formar uma comunidade capaz de compreender a si mesma enquanto corpo social e o lugar que habita no mundo, para então preservá-lo e atualizá-lo da maneira mais ajustada possível. É, também, de suma importância que todo esse processo seja, preferencialmente, protagonizado por indivíduos ligados ao território em questão.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Bruno Brito

Natural de Jacareí, é formado em Artes Visuais pela UNESP, Mestre e Doutorando pela mesma instituição. Foi docente na Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP) e também na Pós-Graduação em Cozinha Brasileira, do SENAC Campos do Jordão. Também é pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa Paisagem, Território e Cultura, da Universidade de Taubaté (UNITAU). Em 2010 cursou o Técnico Florestal na Escola Agrícola de Jacareí e desde 2011 sua pesquisa visual gira em torno dos signos presentes na cultura caipira, aflorados na arquitetura, nos festejos populares, na alimentação e na ocupação da paisagem. É fundador do Instituto Arado, uma iniciativa voltada para a pesquisa e divulgação do imaginário rural brasileiro.

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