Certa vez, numa conversa informal no Rio de Janeiro, Sonia Guajajara falava da importância da luta das mulheres indígenas. Paula Lavigne, com seu estilo direto e reto, questionou: “Então eu quero ver se tem uma cacica”.
A brincadeira ficou no ar.
Na semana passada visitei a região de Amarante no Maranhão, a convite da Sonia, para conhecer o território indígena Arariboia, onde vivem mais de 12 mil guajajaras. Na verdade, estava pagando uma “dívida”, que vinha desde a campanha eleitoral, de conhecer a aldeia onde Sonia morava.
Chegamos de noite à aldeia Lago Quieto. Só no dia seguinte que soube que ali vivia a cacica Maria Guajajara.
Mulher forte, vivida, nos contou da organização da aldeia, que tem poucas casas, a maioria feita de barro com cobertura de palha. Todas elas com espaços abertos fora, em geral reservados à cozinha.
No centro da aldeia está uma escola indígena, que – como todas as da região – é bilíngue: português e guajajara. A cacica mostrou ainda com orgulho seu trabalho de confecção de uma rede, todo manual, e executado com incrível de perfeição.
Falou dos dons, necessários à vida coletiva, que ela “transmitiu” a outras três mulheres da aldeia.
O “dom da fala” foi transmitido, é claro, para Sonia, que vocaliza no país e no mundo a importância da causa indígena. Aliás, neste momento está num giro por 11 países europeus para denunciar os ataques de Bolsonaro aos povos indígenas. Sem dúvidas, a cacica Maria transmitiu para a pessoa certa.
O “dom da cura” e o “dom do parto” foram também transmitidos a outras duas mulheres. Surama, responsável pela cura, fez curso de enfermagem e é procurada por todos que precisam ali. É nela que confiam, inclusive para confirmar a palavra do médico oficial da cidade.
A cacica Maria pediu um tempo. Foi para sua casa se pintar e voltou dançando. Brincou no vídeo que fizemos: “Boulos não trouxe meu batom”. Nem precisava. Qualquer batom seria ofuscado com a tradicional pintura do corpo e os belos colares da cacica. Um deles feito de tiririca, uma semente do capim, cujo processo de preparação e, depois, do furo para a feitura de colares e pulseiras é incrivelmente trabalhoso.
O dia a dia na aldeia
De noite fomos todos para a festa da “Menina-Moça” ou do “Moqueado”, ritual que marca a passagem das meninas indígenas após a primeira menstruação. Foi na aldeia vizinha. Festa bonita e emocionante. Após a noite inteira de dança, a caça só pode ser servida as 5 horas da manhã.
Mas a vida da aldeia não é só de festas e dons. É também de trabalho, privações e de resistência.
Para evitar a invasão de madeireiros no território, formou-se o grupo de Guardiões, que faz uma espécie de patrulha e luta contra as queimadas em todo a área. Conheci um deles, Fred da aldeia Juçaral, que me presenteou com um colar de tiririca para proteção do corpo contra os males.
A base do Ibama de combate a incêndios, sediada numa das aldeias, é insuficiente e mal equipada. Certamente já sofre com o desmonte do órgão promovido por Bolsonaro e Ricardo Salles, que cortaram 24% do orçamento do Ibama de 2019.
Passei dois dias com Sonia, a cacica e o povo da aldeia. O que mais me impressionou foi a preservação dos valores indígenas e do modo de vida comunitário. Aqui não se trata de romantizar ou pregar a ausência de contato com o resto da sociedade. Não há fartura, as pessoas passam dificuldades e precisam – muito mais do que hoje é oferecido – de políticas públicas do Estado brasileiro.
Os jovens da aldeia querem acessar a internet e as redes sociais e, ainda que com a precariedade do sinal, acessam. As artesãs querem vender seus produtos aos visitantes, para poder comprar o que precisam. A grande questão não é o isolamento social ou cultural. É preservar suas raízes mesmo com o contato.
Foi o que vi na aldeia. Há um ponto comunitário em que recentemente foi feita a instalação de um sinal de internet. Mas ninguém fica lá o dia inteiro, ao contrário, nós visitantes fomos mais vezes à “casa da internet” do que os moradores. A internet está ali, as pessoas usam, mas podem viver sem ela.
Escolhemos pulseiras na casa da artesã e, quando fomos buscar o dinheiro, ela disse para levarmos depois porque agora iria almoçar a tinha afazeres. Precisava vender, mas não estava desesperada pelo dinheiro. A relação com o tempo e com os bens materiais é outra. Os guajajara trabalham, mas não vivem para trabalhar. Também se divertem, tomam banho no rio e descansam nas redes.
Esse modo de vida nos faz refletir sobre nossas escolhas enquanto sociedade. Que valores abandonamos e quais outros assumimos como tão naturais.
O capitalismo faz a sociedade girar em torno do trabalho e do consumo, impõe um ritmo frenético em que “tempo é dinheiro” e estabelece o reinado do lucro acima da vida, do individualismo acima da solidariedade e das relações virtuais acima da convivência. Os povos indígenas mostram que é possível viver de outro modo. E isso num país em que precisam todos os dias lutar para manterem-se vivos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Guilherme Boulos
É professor, diretor do Instituto Democratize e coordenador do MTST e da Frente Povo Sem Medo.
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