A Velhinha, o Crochê e o Zap – IREE

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A Velhinha, o Crochê e o Zap

Ricardo Dias

Ricardo Dias
É luthier, escritor e músico



Dona Catarina era uma senhora pacata. Famosa pelo seu bolo de cenoura, também não fazia feio no crochê. Por conta de seu sucesso nas quermesses da igreja, os vizinhos acharam por bem que ela poderia dar saltos maiores. Mas, para isso, precisava ampliar suas possibilidades de comunicação. Seu telefone – fixo – não funcionava direito, a fiação era velha, mas nunca lhe fez falta. Quando muito recebia telefonemas anuais de uma sobrinha postiça; o restante de suas relações simplesmente a chamava pela janela, isso quando ela mesmo não estava lá, crocheteando e assuntando. Pois bem, acabei dispersando e não falando da tragédia que lhe abateu, anunciada por uma notícia feliz: se cotizaram e lhe presentearam com um celular, smartphone, novinho.

No início ela não conseguiu. Conseguiu o quê? Nada, absolutamente nada. Nem ligar o aparelho conseguia. Mas acabou convencida, e pouco a pouco foi dominando a base da coisa. O filho da Laís Doceira deu o golpe de misericórdia: instalou o whatsapp.

Um novo mundo se abriu diante de seus olhos. Tenho dificuldade em usar lugares comuns: “Se abriu”? “Se descortinou”? Seja como for, ali ela comeu da árvore do conhecimento e, como sua ancestral, foi expulsa do Paraíso.

De cara, descobriu que a melhor época de sua vida simplesmente não existiu. O dinheirinho a mais que lhe permitiu trocar a TV, a geladeira e o fogão – além de uma demão de tinta no chalé – era apenas uma ilusão. O real bom momento estávamos vivendo ali, naquele momento, um pouco antes da pandemia. Ela reconheceu a própria ignorância, e a falta de dinheiro não era culpa do Guedes, era culpa do PT. Ela escapou da eleição de 18, mas tinha absoluta certeza da existência da mamadeira de piroca. E, com a ajuda do padre, rezava agradecendo termo-nos livrado do comunismo.

O tempo passou, ela amaldiçoou o vírus chinês, ria (por dentro, era tímida) de quem usava máscara, chorou a morte de várias amigas que igualmente não usavam. Mas a morte de um rapaz tuberculoso na cidade, que havia se vacinado, justificou sua opção pela não vacinação. Sabia que era apenas uma figura de linguagem a possibilidade de virar jacaré (“não sou burra!!!”), mas entendia a profundidade do alerta do mito – para quem enviou um protetor de latinha de leite condensado, em crochê verde e amarelo.

Veio a eleição de 22 e ela adquiriu forças que jamais conhecera. Já convertida ao neopentecostalismo (o discurso do novo padre era comunista. O anterior havia morrido de covid) ela passou a usar como complemento de indumentária uma bandeira nacional amarrada às costas.

E, não nos esqueçamos, TUDO municiado pelo zap. Sua real bíblia, obedecida ao pé da letra. Não fazia ideia do que era código-fonte, mas sabia que por causa dele precisávamos do voto impresso. Não chegou ao extremo de Ananias do 98, que escreveu com caneta de retroprojetor “mito 22″na tela da urna eletrônica, mas sabia que uma fraude estava em curso.

E, pronto: o presidiário, o comunista, o odioso Nine, venceu roubando.

O mundo de Dona Catarina caiu. Como Deus havia permitido aquilo? Como o demônio era insidioso! Passou os dias ruminando vinganças, aquilo não podia ficar assim. Ficar na frente do quartel, com seu crochê, decididamente não era suficiente. Ela se esgueirava para dormir e fazer suas necessidades em casa, voltando antes da alvorada. Mas comer, comia do churrasco farto, oferecido por um fazendeiro bondoso.

E a chance veio quando o prefeito, ex-corrupto agora renascido em Cristo, conseguiu um ônibus para irem a Brasília fazer democracia com as próprias mãos. O pastor garantiu que seria algo meritório aos olhos de Deus. E, claro, com total apoio do Mito, embora este não tivesse se manifestado, prudentemente. Nenhum dos dois, entretanto, iria na excursão. Ficariam “garantindo a retaguarda” e a festa que fariam na volta dos heróis. A boa dona Catarina não pensou duas vezes: colocou seu nome na lista, acrescentando que quando distribuíssem refrigerantes na viagem (haveria de um tudo: comida, bebida, um jetonzinho…) o seu seria diet; a diabetes estava meio descontrolada, melhor não abusar.

E chegou o grande dia! Ao som do hino nacional, os auto intitulados “Bandeirantes 22” adentraram o ônibus especial, com ar condicionado – que funcionava a cada hora e meia – e durante as duas primeiras horas de viagem, que duraria quase um dia inteiro – revezaram hinos pátrios, militares e religiosos. O lanche, infelizmente, foi insuficiente, durando menos que os hinos. O ar refrigerado decepcionou, funcionando uns 5 minutos a cada 4 horas, mas o fervor cívico não esmoreceu. Estavam cumprindo as ordens de Deus e do Messias.

O resultado todos sabem. Dona Catarina foi presa, um mal intencionado a fotografou fazendo cocô num saco de supermercado, mas sua saúde frágil e sua doçura fizeram com que decidissem soltá-la. O pouco dinheiro que havia ganho mal deu para pagar uma passagem de volta, dessa vez num ônibus de verdade.

Chegou de madrugada, aplaudida pelo Melo, o mendigo da cidade, com evidente deboche.

Mas na qualidade de biógrafo de dona Catarina sou obrigado a trazer à luz um fato: a doce velhinha tinha sido, anos antes, condenada por estelionato, por ter aplicado golpes na própria mãe, o que lhe garantiu a compra do chalé onde morava. Também havia desviado um dinheirinho das quermesses, mas isso ninguém descobriu.

PS: As donas Catarinas da vida certamente ignoram o que acontece com os Yanomami. O Mito elogiou a cavalaria americana, que dizimou os índios. Por sorte da humanidade, ele tem a competência do general Custer.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Ricardo Dias

Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.

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