A vacina africana e o fim da pandemia – IREE

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A vacina africana e o fim da pandemia

Gustavo Buttes

Gustavo Buttes
Diplomata



Quem poderá negar que da África veio o conhecimento científico que, pelo menos desde o século XVIII, está sendo empregado no controle de epidemias e pandemias mundo afora? A África, e me permito falar de um continente inteiro como se fosse uma entidade só e como se seu território não fosse vivo e parte constituinte ou primordial de seus povos, faço isso por uma questão de pragmatismo literário, enfim, essa vasta porção de terra que beija a Europa e abraça diversos oceanos guarda muitos mistérios, um clichê interessante para ser melhor explorado e desenvolvido.

Estudiosos do mundo inteiro se dedicam a essa tarefa, procuram destrinchar nacos de tempos e espaços em exercícios muito pouco frutíferos, embora rentativos, na ilusão de trazer à tona verdades supostamente fundamentais sobre mais de cinquenta países tão diversos quanto são falsas as suas fronteiras, herança do colonialismo espoliativo, já sabemos. Pois devo dizer que é tudo #fakenews, como dirá o marqueteiro político, tal abordagem descontextualizada ignora na maioria dos casos a premissa mais basilar que existe, ignora que, mesmo deitado, o ancião percebe as coisas melhor do que o jovem em cima de uma árvore (provérbio nigeriano). A força da tradição e ancestralidade, na África, vence argumentos cristalizados de acadêmicos de universidades conceituadas, pesquisadores de think tanks primeiro mundistas e diplomatas em suas bolhas de expatriados, e faço disto também a minha autocrítica.

Anúncio em jornal de Boston sobre a chegada de 250 escravizados a bordo de cargueiro recém chegado da África, por volta do ano 1700, enfatizando o fato de que todos eles fizeram quarentena no navio e estão livres da varíola

Anúncio em jornal de Boston sobre a chegada de 250 escravizados a bordo de cargueiro recém chegado da África, por volta do ano 1700, enfatizando o fato de que todos eles fizeram quarentena no navio e estão livres da varíola

As massivas somas de dinheiro investidas em produção de conhecimento sobre a África, em boa medida para fins espúrios, pura especulação capitalista sedenta pelos recursos naturais e as ricas flora e fauna, marítima e terrestre, não arranham nem a superfície das realidades existentes nas planícies, savanas, florestas e desertos africanos, descolados que estão do resto do planeta por uma espécie de pangeia política, econômica, cultural, científica, social. A atual problematização em torno das questões africanas feita pelo chamado Ocidente, por exemplo, é inócua e possui vícios de origem, porque é feita a partir de lentes desfocadas.

Peço perdão pela cacofonia e aparente contradição, mas, ao contrário do que ocorre nos dias que correm, a África não deveria ser percebida como um lugar-objeto, e seu povo como seres externos ou alheios aos fenômenos cotidianos do mundo da vida. A história que deve ser contada é a história social e envolve exatamente as interações naturais, complexas, endógenas, que constroem esse próprio universo.

Ora, a história da África não é feita de biografias de grandes homens, embora eu também admire a valentia de guerreiros como Nelson Mandela, ícone da luta contra o apartheid, Julyus Nyerere e Samora Machel, heróis das guerras de independência da Tanzânia e Moçambique, respectivamente. As biografias, sabemos todos, apesar de sua leitura fácil e agradável, são ficções, esforços da imaginação, são construções narrativas que, como tal, servem a propósitos políticos específicos e, no caso das autobiografias, narcisistas e se sustentam apenas nos contextos patriarcais, coloniais e belicosos em que surgem.

Cabe nessa categoria, por exemplo, a grandiloquente história de bravura, destemor e audácia de um dos maiores pajés das tribos bretãs do norte europeu, o estrategista político e militar e cavaleiro da rainha Winston Leonard Spencer-Churchill. Sobre ele, produziu-se muito, escreveu-se muito, e ainda assim pouca gente lembra que, quando jovem, aos vinte e cinco anos de idade, em 1899, o feroz “bulldog”, como Churchill viria a ser apelidado pelos russos e teria assinado alguns de seus telegramas ao presidente americano Franklin D. Roosevelt, no contexto da guerra contra o nazismo, ideologia tão em voga ainda hoje, pouca gente lembra que ele aportou na Cidade do Cabo, na África do Sul, com dezessete garrafas de whiskey escocês, na condição de observador militar e correspondente jornalístico, de novo, em 1899, para participar da Segunda Guerra dos Boers, conflagração de colonizadores holandeses e franceses já estabelecidos em terra zulu contra o expansionismo inglês nos limites meridionais do continente, que havia sido recém partilhado por potências europeias sentadas em Berlim, para alegria de uns poucos e desgraça de muitos outros.

Para surpresa geral, mas não a minha, deixo claro, em duas ou três semanas, o comboio em que transitava foi alvo de uma emboscada e Churchill foi feito prisioneiro por cerca de um mês de uma guerra crua e estúpida, crua porque naquele tempo as guerras não eram feitas por mísseis teleguiados e drones-robôs assassinos, e sim por homens de carne e osso, e estúpida, bem, porque todas as guerras são estúpidas. Eu mesmo só sei desse fato, convenhamos, vexatório, porque até hoje o prédio da então legação britânica em Lourenço Marques (hoje, Maputo) fica próximo a minha casa e conserva intacta a campainha que o jovem Churchill tocou quando ali chegou, exausto, após conseguir fugir do campo de prisioneiros em que foi detido em Pretória e também da própria guerra, visto que em pouco tempo resolveu abandonar as incertezas militares em favor da solidez de uma carreira política em Londres, em paz enfim consigo mesmo, se não com os boers.

Como se vê, e não há segredo algum nisso, a literatura que inventa histórias e tece os fios da História é rápida em transmutar fracassos pessoais, e por que não profissionais, em proezas militares e condecorações cafonas, e em esconder a vida mais humana que há, a que resiste ao massacre do cotidiano. Talvez seja mesmo o caso de considerar a própria literatura um instrumento de poder e manutenção da ordem a serviço de elites, crítica que algum teórico marxista alemão já terá feito.

De todo modo, até que me provem o contrário, teimo que a História com agá maiúsculo, a dos livros didáticos, não é mais que grandes fábulas, hipérboles que não tocam o substantivo, e digo isso sem querer diminuir o sucesso que elas obtiveram em seus propósitos, cumpriram papel fundamental na estruturação das sociedades modernas por meio de sua atuação no campo imaginário, mítico, das ideias que geram ação e assim empurram a humanidade adiante, a tal psicologia das massas. Refiro-me mais precisamente ao esforço de construção literária de arquétipos de profetas e mártires, heróis e patriarcas, estamentos religiosos e políticos que desde há muito manejam os mecanismos de acumulação de poder e riqueza, se não é que ambos sejam a mesma coisa.

De minha parte, prefiro acreditar que somos todos iguais, diferentes, dá na mesma, pois fomos lançados à mesma sorte, sem saber bem o porquê de existir nem o significado de não existir, e que por isso mesmo a História a ser contada de agora em diante deveria invocar vícios e virtudes de outra natureza, uma natureza simbiótica que reconstrua o vínculo perdido do ser humano com o seu lugar mais íntimo, seu habitat, seu ecossistema, uma coletânea de biografias que retratem o mundo da vida a partir de letras diversas, que perceba a realidade por meio de lentes autóctones, biografias que noticiem a morte coletiva dos guarani-kaiowá, pois para eles não existe vida se não há terra, ou que repercutam a dor e angústia de todos os povos originários americanos, que contem como se deu a morte do Rio Doce, para onde foi a sua alma, ou como Belo Monte conversa com o Xingú e seus ribeirinhos, e contem também a história da gente comum na periferia das grandes e pequenas cidades, do funcionário público deprimido na repartição, das mulheres nas comunidades, seu feminicídio de cada dia, do negro assassinado segundo fórmulas estatísticas, um a cada vinte e três minutos, dois negros em cada três homicídios, negros representam 78% das pessoas mortas por armas de fogo no Brasil, assassinato de negros aumenta 11,5% em dez anos.

Essa História me interessa mais, admito, não a oficial de estadistas ou generais, o diabo que os carregue, mas a do motoboy atropelado na Marginal Tietê, do engraxate que acorda às 5h da manhã e não sabe se terá o que comer no fim do dia, esse homem um dia foi meu pai, e por isso mesmo eu queria ouvir biografias de uma outra natureza, terrestre, humana, que sejam cantadas por católicos e evangélicos e também por umbandistas que invocam rituais politeístas da mãe África, os mais diversos, biografias escoradas na rocha da tradição oral dos povos bantos, mistérios ancestrais transmitidos de geração em geração por xamãs e bruxos, desde o começo dos tempos, quando havia apenas uma mulher sobre o planeta, que nasceu de uma planta.

Mas não é só isso, precisamos também escrever a história dos chifres de rinoceronte que são traficados da África para o oriente, mata-se o mamute milenar para que o pó de seu corno sirva de afrodisíaco a poucos homens de poder, mais de mil por ano, uma história triste que só a natureza conhece. Entretanto, para cada história triste haverá uma alegre que precisa igualmente ser contada, o filho da empregada que passou no vestibular de medicina, afinal, somos tudo isso, um nó de muitas pessoas, indissociável de sensações, afetos, ambientes, relações, aliás, pense que interessante seria a biografia das plantas e remédios tradicionais moçambicanos, livros e mais livros, quantas vidas salvaram, ou a dos deuses que habitam os mundos superior e inferior da imaginação subsaariana, mulungu, unkulunkulu e modibo, divindades que instruem o agricultor desde a semeadura até a colheita, ou a das relíquias sagradas dos fetichismos que habitam as casas dos feiticeiros de cada vilarejo, cada objeto carrega consigo uma história de fé e veneração, enfim, acho definitivamente que o mundo precisa de biografias de uma outra natureza.

Escrevi em outros momentos neste espaço, vide “Temos que sair do DOI-CODI”, ou Cidadanias Assimétricas, sobre algumas das histórias de vida que mais me fascinam, como a do escravizado do século XIX Mahommah G. Baquaqua, cuja luta de resistência se iniciou com sua captura nas florestas tropicais africanas e atravessou inúmeras fronteiras físicas, passando por Brasil, Estados Unidos, Haiti e Inglaterra, antes que lograsse retornar a sua terra natal, na África Ocidental, na condição de líder abolicionista e missionário protestante. Sua luta ultrapassou também algumas barreiras cronológicas. Seu testemunho impulsionaria, muitos anos depois, uma série de movimentos em prol da igualdade de direitos políticos e civis nos Estados Unidos, de que o exemplo mais recente é o Black Lives Matter, pela melhoria das condições de vida da população negra marginalizada e contra a repressão do Estado policialesco.

Igualmente brilhante é a vida de outro escravizado originário da África Ocidental, conhecido apenas pelo seu nome de batismo, Onésimo, que significa “útil” em grego, adjetivo que fala muito sobre a ética protestante, e não é por outro motivo que o africano precisou ser batizado, afinal, apenas bons cristãos podiam habitar as colônias puritanas da América do Norte. Sobre sua vida se conhece muito pouco, somente o que foi registrado no diário de seu proprietário, um reverendo famoso por sua atuação no caso das bruxas de Salém, que dizia ser o negro de “má índole”, “gatuno” e “inútil”.

Pois bem, apesar das infundadas acusações, ao que consta, ou mesmo em função delas, não importa, somos a soma de nossos vícios e virtudes, o que importa é que Onésimo sobreviveu à maldição do navio negreiro, espécie de limbo onde muita carne humana foi moída por séculos durante a travessia do céu ao inferno, e chegou, graças a sua força, não a de Deus ou dos orixás, à cidade de Boston, capital da Província da Baía de Massachusetts, isso em princípios do século XVIII, num tempo em que sucessivas epidemias de varíola dizimavam comunidades inteiras no velho e no novo mundo. Como já mencionei, mesmo deitado, o ancião percebe as coisas melhor do que o jovem em cima de uma árvore, e foi por isso que o Onésimo, outrora feiticeiro em sua tribo, possuidor de todas as ciências do mundo, do seu mundo, revelou a seu senhor que detinha a cura para a peste até então letal, bastava esfregar um punhado de pus de um infectado pela varíola numa ferida aberta no braço de determinada pessoa, que ela não morreria mais dessa doença.

Claro, a técnica transmitida por Onésimo a seu senhor e, por que não, a toda a cultura médica ocidental remonta a tempos imemoriais, terá sido utilizada para salvar vidas em muitas comunidades ancestrais, fato que não impediu que uma certa História atribuísse a invenção da vacina ao médico e naturalista britânico Edward Jenner, ele que teve tão-somente o trabalho de emular e patentear, muitos anos depois, o conhecimento trazido à luz pelo seu precursor africano.

E quem poderá negar que da África veio o conhecimento científico que, pelo menos desde o século XVIII, está sendo empregado no controle de epidemias e pandemias mundo afora?



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Gustavo Buttes

É diplomata de carreira e serve atualmente na Embaixada do Brasil em Moçambique. É mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Escreve para o IREE Cultura de forma independente, seus artigos não refletem a opinião do Itamaraty.

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