Com exceção das brigas políticas e partidárias que acirraram muito os ânimos desde o golpe na Dilma, que derrubou todos nós, há muito que eu não assisto a uma indignação coletiva tão exacerbada quanto a esta que o novo clipe de Anitta vem provocando.
A divisão desta vez não se dá entre os tradicionais grupos de direita e esquerda mas, de certa forma, não foge muito disso quando se nota nas críticas um conservadorismo elitista ao não aceitar que o país seja apresentado no exterior pela imagem de uma mulher mestiça que, apesar de cantar bem em português, inglês e espanhol, explora ao máximo a sua sensualidade, sensualidade esta que é a cara do seu povo. E é exatamente esse povo, nem sempre atraente para os padrões das classes alta e média, que se identifica, ama e se orgulha da Anitta.
Pela estética e moral da elite brasileira, seu modo de cantar é extremamente vulgar. No entanto, os zeladores dessa classificação não se sentiram incomodados, no passado, com as performances das sexies falsas loiras e ruivas Marlyn Monroe, Bregitte Bardot, Rita Hayworth ou Madonna.
Anitta, como as celebridades acima e tantas outras, fez diversas cirurgias plásticas, alisou e pintou os cabelos e, com criatividade, sabe utilizar o corpo e o erotismo. As mulheres da Zona Sul carioca, inclusive a musa inspiradora de “Garota de Ipanema”, também adotaram recursos estéticos artificiais mas, por serem aparentemente brancas, adequam-se ao feitio de um Brasil conciliável com os padrões internacionais e, em especial, com o modelo norte-americano.
No entanto Anitta não é da Zona Sul e nem segue as normas convencionais dos moradores desses bairros.
Chico, em “Caravanas” descreve essa invasão dos suburbanos aos cartões postais do Rio de Janeiro:
“…A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá…”
“…Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné…”.
Ela, ruiva e bem-comportada, inicia o vídeo com uma versão “sampleada” de “Garota de Ipanema” e a encenação de um Rio sofisticado dos anos 1950
A partir do momento em que avisa “Deixe eu te contar sobre um Rio diferente…”, o cenário se transporta para o Piscinão de Ramos e um ônibus lotado, de onde um povaréu salta pelas janelas ou portas e o funk se sobressai. Anitta, já num biquíni cavado, continua sempre em inglês: “…o de onde vim, mas não o que você conhece quando não tem um real…”. A essas alturas o clipe mostra flagrantes de pessoas de várias as idades, cores e orientações à vontade, incluindo mulheres obesas que, desinibidas e alegres exibem suas celulites em biquínis-fio-dental. E Anitta prossegue:”…nós não parecemos modelos, linhas bronzeadas, grandes curvas…”, e ainda, “…as ruas me criaram, eu sou da favela”.
Sim, Anitta é inteligente, criativa, talentosa e, para culminar, ao cantar em inglês consegue furar o bloqueio da língua e mostrar ao planeta justamente o que envergonha certos brasileiros que tanto se esforçam para impressionar o mundo com as belezas das nossas praias e o charme de Gisele Bündchen.
É lamentável e revelador constatar na imprensa e nas redes que pessoas que, do ponto de vista político, defendem teses progressistas, não conseguem se livrar do ranço de uma mentalidade conservadora e intolerante.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ana de Hollanda
É cantora, compositora e ex-Ministra da Cultura. Além do trabalho na música, com cinco discos gravados, Ana estudou artes cênicas, foi atriz, dramaturga e produtora cultural. Foi Coordenadora de Música do Centro Cultural São Paulo, Secretária de Cultura do Município de Osasco, Diretora do Centro de Música da Funarte e vice-Presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
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