Quem foi mesmo que disse que as revoluções são tramadas pelos inteligentes, feitas pelos corajosos e aproveitadas pelos covardes? Não sei dizer se há verdade no provérbio, mas talvez o antigo Egito possa dar algumas pistas sobre tema não pouco importante nos dias que correm.
Há poucas semanas tive o privilégio de conhecer esse lugar quase onírico, a terra dos faraós, pedaço de terra de uma aridez subversiva, introspectiva, onde as areias do deserto do Saara criam um irritante contraste com o verde vivíssimo que floresce às margens do extenso rio Nilo, um breve nicho de vegetação em que se desenvolveu ao longo de alguns milênios uma instigante civilização, cimentada em torno de politeísmos polimórficos, para usar a expressão de algum acadêmico, muitos deuses que foram tomando formas diversas e adaptando-se aos diferentes estágios do desenvolvimento desses povos e culturas ribeirinhas, isso no curso do tempo cronológico e no da imaginação, afinal, o curso perene e inexorável do sagrado rio é um pouco como a vida literária que emana dali, feita em boa parte de magias, rituais, mitos e histórias, muitas histórias.
Não pretendo, claro, descrever o Egito em sua exuberância, nem poderia, para isso se torna realmente necessária uma visita in loco, são muitos contrastes, uma zona crepuscular (twilight zone?), o dia vai virando noite, e o calor, frio, ali onde a sombra das palavras se mistura à concretude da realidade, pois há sim muito concreto no Egito, ora, um país não é apenas a soma de suas subjetividades ou adjetivações, é também concreto – e aqui me refiro ao teor da pedra de Roseta, um fragmento de rocha que data do período em que os gregos controlaram o Egito, o chamado Egito Ptolomaico, que começou com a ascensão do general Ptolomeu I, após a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C., e terminou com a morte de Cleópatra e a conquista do território pelos romanos, em 30 a.C.
Na “pedra mais famosa do mundo” foram talhados os decretos de um conselho de sacerdotes egípcios acerca do culto ao faraó grego Ptolomeu V. O fato de o mesmo texto ter sido inscrito em hieróglifos egípcios, em egípcio demótico e em grego antigo permitiu que, a partir do século XIX, quando a pedra foi redescoberta e transportada para Londres, sede da principal civilização de então, pesquisadores pudessem decifrar o significado dos caracteres utilizados na escrita sagrada do antigo Egito, a partir do pareamento com a versão em grego, abrindo um universo amplo para pesquisas e dando início à disciplina que se convencionou chamar de “egiptologia”.
A propósito, os gregos e sua mania de dar nome às coisas, desde Aristóteles, são responsáveis pela própria origem da palavra moderna “Egito”, cuja etimologia se liga provavelmente a uma das duas expressões, “a terra abaixo do mar Egeu” ou “a mansão da alma do deus Ptá”, uma leitura grega que, em qualquer dos casos, diz algo interessante sobre o reino dos faraós.
Os dois povos aliás mantiveram na Antiguidade Clássica uma relação umbilical, que se manifestou não só no campo das relações políticas e nas alianças militares para deter o avanço persa, por exemplo, ou no intenso fluxo comercial, nos dois sentidos, típico dessas encruzilhadas civilizacionais, mas também na literatura, cristalizada seja nas narrativas historiográficas que Heródoto, o “pai da História”, faz da vida e obra de faraós e do cotidiano em torno do rio Nilo, o mais poderoso dos deuses egípcios, seja nos romances de Heliodoro e Xenofonte, enfim, em todo rastro do passado se vê elementos da simbiose de ambas as culturas, um exercício de observação porém que deixo aos egiptólogos, já que existem e é para isso mesmo que foram designados.
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Em uma viagem de quinze dias pelo Egito foi possível atravessar cerca de cinco mil anos de História, com início nas primeiras dinastias do reino antigo, época em que foram construídas as pirâmides no baixo Nilo, em torno da então cidadela de Mênfis, hoje Cairo, passando pelos reinos médio e novo, já no alto Nilo, em Tebes, hoje Luxor, quando as necrópoles de faraós deixaram de ser monumentos portentosos que apontam para os altos céus e passaram a ser construídas em cavernas e tumbas, por conta da necessidade de proteção de seus corpos sagrados, à espera da ressurreição futura, e dos magníficos sarcófagos e respectivos tesouros com os quais os governantes eram enterrados, afinal o persistente hábito de saques noturnos em cemitérios não é de hoje, vem de muito tempo atrás.
A jornada milenar da civilização egípcia atravessa ainda os períodos ptolomaico de que falei e romano e chega à era cristã, e digo isso com propriedade, o próprio Cristo terá pisado em terras egípcias durante os dias de exílio de sua família, alertados que foram pelos reis magos dos planos de Herodes de assassinar todos os primogênitos da região, o chamado Massacre dos Inocentes, enfim, todo mundo sabe disso e não convém falar de necropolítica em texto tão despretensioso, o fato é que os dois milênios do Anno Domini assistiram o rico florescimento das civilizações bizantina, primeiro, e muçulmana, em seguida, respectivamente no entorno das cidades de Alexandria, com seus famosos farol e biblioteca, às margens do mar Mediterrâneo, e Cairo, mais próxima ao vértice do delta do rio Nilo.
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Estamos no ano 1.458 a.C., isso são quase três mil anos e quinhentos anos atrás, faça as contas, e a impressão que temos hoje é de que a História não existia naquela época, as pessoas só olhavam para o futuro, e aliás é disso que se trata a ideia das pirâmides, são mausoléus que apontam para o céu para recordar as gerações seguintes de que o rei é também deus, não obstante tenha resolvido dar o ar da graça logo ali, na margem direita do rio Nilo, isso não porque os faraós eram de esquerda ou de direita, eu apostaria até que fossem de centro, mas é que a população acreditava que a vida deveria transcorrer nas terras do lado em que o sol nascia, era onde a vida florescia e era abençoada pelo deus-sol Rá, o pai e criador do mundo, dos deuses e da humanidade; do outro lado, na banda ocidental do rio, nas trevas onde o sol se punha, os egípcios antigos construíam cemitérios e necrópoles, incluindo as pirâmides e as tumbas do Vale dos Reis, onde por exemplo jazeu intacta até quase ontem, começos do século XX, a múmia do rei Tutancâmon e sua famosa máscara de ouro maciço, enterrada próximo a um santuário dedicado a Anúbis, o deus dos mortos, com sua cara de chacal, ele que era responsável pelos ritos funerários e por guiar a alma penada até o tribunal de Osíris, o deus do submundo, a quem cabia decidir sobre o destino final de cada um, segundo método pouco ortodoxo: finalizada a leitura do livro dos mortos, pesados os feitos e os pecados, se o coração do cidadão fosse mais leve que uma pena, ele iria para o céu; se fosse mais pesado, a cabeça do condenado seria devorada por Ammit, uma divindade feminina com cabeça de crocodilo.
Na mesma região do Vale dos Reis, de novo, em 1.458 a.C., num templo majestoso e que se diferenciava em porte das câmaras mortuárias de outros faraós, foi depositada a múmia da rainha Hatexepsute, uma faraó-mulher que governou o Egito por cerca de vinte anos, muito tempo antes de Cleópatra. Hoje é pacífica a ideia de que seu governo foi próspero, de muito comércio e diplomacia, isso graças à recente decodificação de hieróglifos, que permitiu fosse recriado parte de seu reinado; o que não se sabe ao certo é o motivo que levou seus sucessores a empreenderem uma campanha de eliminação total de sua memória, em grande medida bem sucedido, por meio da profanação de suas estátuas e monumentos e do sumiço de registros sobre sua vida.
Hatexepsute significa “a mais importante das nobres damas”, o que de fato era, filha do rei Tutemés I e da rainha Amósis, casal que não gerou herdeiro homem e, por isso, escolheu o filho do rei com uma rainha secundária para ocupar o trono. A então princesa Hatexepsute casou-se com seu meio-irmão e príncipe herdeiro, Tutemés II, de modo a preservar a pureza da linhagem real. Depois de apenas três anos de reinado, porém, o faraó Tutemés II veio igualmente a falecer sem deixar filho homem, sendo o único herdeiro uma criança muito precoce de seu harém, competindo à rainha viúva Hatexepsute assumir a regência do reino até que Tutemés III, seu enteado ou sobrinho, tivesse capacidade de governar.
A história a partir daí desenvolve-se de forma bastante atípica para a época, e infelizmente para os dias de hoje também, justamente quando se torna mais interessante: ao longo dos anos, a regente Hatexepsute deixa gradualmente de ser retratada como uma jovem rainha de postura recatada para travestir-se em um imponente estadista, passando a ser representada com o corpo cada vez mais musculoso e de feições masculinas e vestimentas e adornos de cabeça típicos dos faraós homens, inclusive com a barba postiça e a coroa divina que simboliza a unificação dos reinos do alto e baixo Nilo.
Ora, é claro que Hatexepsute não foi a primeira travesti da História, e nem será a última, não fosse assim, a raça humana não existiria, pois somos exatamente isso, a unidade na diversidade, muito embora tais obviedades em relação a identidade de gênero pareçam distantes da realidade política de ontem e de hoje, o que só prova que a estrada é longa e que estamos apenas no início da jornada por sociedades mais justas e inclusivas.
Acredita-se que o processo de travestimento da rainha em faraó lhe custou o quase banimento de sua memória histórica – seu nome foi rasurado e substituído pelo de Tutemés III nos arquivos e registros da época -, mas seu esforço não foi em vão, serviu para trazer à luz tanto tempo depois um debate altamente relevante, que precisa ser feito, sobre a relação entre gênero e poder. Seu exemplo de vida talvez sirva inclusive como fonte primária para uma nova forma de enxergar a História, menos voltada à glorificação dos feitos de grandes homens, menos machista ou mesmo binária, mais queer, coletiva e social, que reconheça exatamente na pluralidade das possibilidades humanas a grande força motora da boa política e sua capacidade de afetar positivamente a realidade.
Tendo a concordar com Naguib Mahfouz, escritor egípcio laureado com o Nobel, não me parece estranho que os egípcios adorassem os faraós, mas sim que os próprios faraós se considerassem deuses. Eu abriria uma única exceção, no caso de Hatexepsute, porque a força e resiliência de sua figura colocam-na certamente em um patamar mais elevado, tanto que sua vida se traveste ainda hoje de muitos significados e é sublime em um certo sentido. Só espero que a revolução política e identitária que ela preconiza não seja como as demais, tramadas pelos inteligentes, feitas pelos corajosos e aproveitadas pelos covardes.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Gustavo Buttes
É diplomata de carreira e serve atualmente na Embaixada do Brasil em Moçambique. É mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Escreve para o IREE Cultura de forma independente, seus artigos não refletem a opinião do Itamaraty.
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