A Posse, o Incapaz e as Pontes – IREE

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A Posse, o Incapaz e as Pontes

Ricardo Dias

Ricardo Dias
É luthier, escritor e músico



Este artigo começou a ser escrito no dia 30/12. Eu tencionava falar sobre a posse apenas mês que vem. Talvez fosse melhor, não dá para fazer graça tão emocionado. Mas, justo por isso, não resisto e falo. Mês que vem falo mais.

Que posse, senhores! Com o chão lavado pelas lágrimas dos golpistas acampados, tudo transcorreu lindamente. A caneta que Lula ganhou no Piauí, em contraposição à Bic cruel, as lágrimas de um ex-retirante ao se referir às pessoas com placas pedindo comida nos sinais de trânsito, a nunca antes vista subida da rampa, todos nós subindo com ele (não me senti representado, porém: não havia nenhum intelectual de beleza apolínea ali…)… Uma catadora, da terceira geração, entregar a faixa foi a coroação perfeita, uma pessoa bilhões de vezes mais digna e útil à sociedade que o imbrochável covarde. E chorei com o “Boa Tarde, Povo Brasileiro”.

Um dia, a esperança venceu o medo. Hoje, o amor venceu o ódio.

Vamos à crônica original, pois.

A nomeação de Silvio Almeida para um ministério de Lula me provocou sentimentos complexos. Primeiro, o IREE no poder: mais um daqui que ascende a uma posição estratégica. Segundo, como colega – embora ele não faça ideia de minha existência – pensei: um emprego! Uma boquinha! O fim da pobreza! Comecei, pois, a pensar em algum cargo que pudesse ocupar. Chegaria a ele munido de cópias impressas de minhas crônicas, e especificamente pediria este ou aquele cargo. Pensei, pensei, pensei. Pensei muito. E cheguei à conclusão que não sou habilitado a rigorosamente cargo nenhum em seu ministério. Nada.

Com sabedoria, pensei que sua esfera de influência poderia abarcar outros ministérios; ampliei, pois, meus pensamentos. E pensei, pensei, pensei, e uma sombra se abateu sobre minha alma: não tenho nenhuma qualidade. Não sirvo para nada, absolutamente coisa nenhuma. Um inútil, um néscio, um zero absoluto. Imediatamente caiu uma imensa ficha: passei 4 anos tendo TODAS as condições para um alto cargo no governo passado, tinha TODAS as atribuições possíveis: ignorância, incompetência, inabilidade, inaptidão para o que quer que fosse! Como não percebi isso a tempo? Por que fui votar no Lula?????

Mas, passada a tristeza do autoconhecimento, resolvi olhar o copo meio cheio. Não gostei de uma ou outra nomeação de Lula. E isso me fez felicíssimo! Podia simplesmente não gostar de algum ministro, ao invés de ter nojo ou mesmo ânsias de vômito! Pessoas civilizadas, que sabem usar os talheres, em cargos chave. Gente alfabetizada, gente que alfabetiza, na Cultura; gente que cuida da saúde, na Saúde; gente instruída na Fazenda! É um choque cognitivo, ver sair Damares e entrar Silvio; Queiroga e entrar Nísia; ver Guedes sair, pura e simplesmente – podiam nomear um pudim para o cargo que seria mais eficaz que ele – ou mesmo eu! E Flavio Dino, desde já meu escolhido para suceder Lula. E outros, a lista é enorme, dá vontade de chorar de alegria.

Num primeiro momento acreditei em Moro. Durou pouco, mas acreditei. Como já disse alhures, sou burro. Mas quando vi na TV o avião que levava Lula para a prisão ir sumindo ao longe, meus olhos se encheram d’água. Tinha certeza que ali se encerrava uma das mais fantásticas trajetórias que o mundo já havia visto. O retirante, o torneiro, o líder sindical, o deputado constituinte, o candidato derrotado, o candidato derrotado, o candidato derrotado, o candidato vencedor.

No dia seguinte à sua primeira posse eu estava fora da cidade e liguei para minha então mulher. Distraído, não entendia o porquê de as pessoas estarem sorrindo pela rua, e antes que comentasse, ela disse o mesmo. Todos flutuavam pelas ruas, o clima era ameno. E olha que havíamos saído de um governo civilizado, democrático. Mas havia esperança no ar e, se ela é a última que morre, é a primeira a nascer. E estava esfuziante, linda. Demos a democracia certa como uma religião qualquer, para citar Pessoa.

Mas…

Nas profundezas fétidas dos esgotos de Brasília seres inomináveis não gostavam nada daquilo. E começaram a preparar, com paciência e desvelo, o prato a ser servido futuramente. Escolheram um bobo da corte aparentemente inofensivo e começaram seu trabalho.

Ninguém imaginava que o que veio seria possível. Quando tomou posse, sabíamos que seria ruim. Muito ruim. Mas eles dobraram a meta e dobraram de novo, e mais 10 vezes, conseguindo fazer o pior e mais lamentável governo da história.

Mas não acabou. Lula nos alertou que a luta não acaba com a derrota de seu mito. O IREE, que surge exatamente para estabelecer pontes, será mais necessário que nunca. Precisamos resgatar as vítimas dos desmandos, reconstruir o país, e depois conquistar corações e mentes dessa turba de verde e amarelo. Vai ser difícil, mas precisamos estender a mão. Se conseguimos ver num assaltante a culpa da sociedade que praticamente o obrigou a ser o que é, precisamos entender que suas deficiências (e posso falar assim, eles não nos lêem) não são inteiramente culpa sua. A propaganda caindo em mentes simplórias é poderosa. Mussolini saía em motociatas. Hitler usava o Alemanha Acima de Tudo, eles sabem o que fazem. Precisamos dar cultura e cuidados a essas pessoas.

Dá nojinho, mas precisamos.

PS: Neste exato momento Pelé está tirando sua bilionésima selfie com anjos. Deus está tranquilo, pois foi o primeiro a pedir uma foto com o Rei.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Ricardo Dias

Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.

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