A pesquisa acadêmica como instrumento de luta – IREE

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A pesquisa acadêmica como instrumento de luta

Letícia Chagas

Letícia Chagas
Liderança do Movimento Estudantil



Nos últimos meses, têm sido frequentes as discussões acerca da precarização da atividade acadêmica no Brasil. No estado de São Paulo, o governo Dória planeja, através do Projeto de Lei nº 529, confiscar o superávit financeiro de universidades estaduais e fundações, entre elas a FAPESP, uma das mais reconhecidas agências de fomento à pesquisa no Brasil. O projeto, se aprovado, em muito afetará o desenvolvimento de pesquisas científicas no estado.

Apesar desse cenário geral, as pesquisas em ciências humanas parecem ser as mais desvalorizadas, tendo sido inclusive retiradas da lista de prioridade de financiamento doConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) até 2023.

Para além disso, as pessoas tendem a considerar que essas pesquisas não trazem soluções para problemas reais e imediatos, sendo por isso desnecessárias para o desenvolvimento do país. Mas isso não é verdade, e tive o privilégio de descobrir a importância da pesquisa em ciências humanas já no meu segundo ano do ensino médio, cursado em uma escola técnica estadual.

Naquele ano, passei a ter aulas de História com uma professora que me ensinou o que era ciência. Até então, as aulas de História para mim se resumiam a copiar longos textos passados em lousa e fazer exercícios nos livros didáticos. Mas essa professora nos ensinou História de um jeito diferente: trabalhou textos que problematizavam o uso do termo “índio” – considerado por alguns pesquisadores como homogeneizante e apagador da diversidade de comunidades indígenas que aqui existiam; nos ensinou sobre o continente africano e os reinos que ali existiam antes do processo de escravização transatlântica. Com ela, aprendi uma História que os livros didáticos não contavam.

Essas aulas me ensinaram que as informações não vêm do nada e devem ser alvo de questionamentos. Conheci, a partir daí, a figura da pesquisadora. Também aprendi o que eram referências bibliográficas e regras ABNT. Percebi que a visão homogeneizante que os livros didáticos nos passavam contribuía para o apagamento de tantas outras narrativas que fazem parte de nossa História. Naquele momento, a pesquisa acadêmica me pareceu essencial para qualquer política que se preste a lutar por um mundo melhor.

Eu só comecei a fazer pesquisa dois anos depois, já em uma das mais tradicionais faculdades de Direito do Brasil. Em meio a um ambiente acadêmico marcado por uma ciência branca, elitista e liberal, minhas aulas de História já tinham me mostrado que as narrativas produzidas por essas pessoas não eram as únicas possíveis.

Pesquisar se transformou para mim em um instrumento de luta e resistência. Se quero combater narrativas tão homogeneizantes, é necessário saber questioná-las. Ao longo de meus três anos de graduação, meus temas de pesquisa têm mudado, mas todos têm em comum um interesse por compreender o mundo à minha volta e contribuir para sua transformação.

Atualmente, pesquiso sobre democracia e participação popular, porque quero compreender qual o papel das classes populares no regime democrático, já que estão tão distantes dos centros de poder. A pesquisa ainda está em andamento, mas já aprendi algo fundamental: a democracia pode significar muitas coisas diferentes de acordo com os interesses de classe que estão em jogo. Nem todas as compreensões de democracia as classes populares detêm alguma importância para além do ato de votar.

Para compreender qual é a democracia que almejamos e como construir um mundo menos desigual, a pesquisa em ciências humanas é imprescindível. É por isso que presidentes como Jair Bolsonaro se prestam a retirar o financiamento a essas pesquisas, já que sabem que elas podem ser utilizadas como uma arma para desbancar seus discursos vazios.

Tão importante quanto minha prática política é, portanto, minha atuação enquanto pesquisadora. Política e pesquisa acadêmica são coisas que, para mim, andam de mãos dadas: é a pesquisa que me ajuda a compreender o porquê e para quê lutar.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Letícia Chagas

Graduanda em Direito na USP, foi a primeira presidente negra do Centro Acadêmico XI de Agosto (2020-2021) e pesquisadora do Programa de Educação Tutorial (PET) Sociologia Jurídica. Atualmente, é coordenadora de pesquisa do Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA).

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