Para certa tradição da cultura ocidental, o corpo é entendido como uma materialidade que não está vinculada à mente ou é superior a esta. Platão, por exemplo, afirma no Banquete que “se o universo não é perfeito, isso ocorre em virtude de a matéria imprimir a ele seu grau de imperfeição”. Apesar de não conceber a separação entre o corpo e alma, Platão entendia que o corpo tinha que ser submetido à anima; uma condição para que atingíssemos o belo. Certa tradição cristã, nesta linha, vai estabelecer ligações entre o corpo e o pecado, nas artimanhas das tentações.
Descartes foi peremptório ao afirmar que o corpo é uma matéria que não pode compreender o mundo e pode mesmo ser um obstáculo a esta compreensão. O universo só pode ser entendido pelo intelecto e os desejos do corpo precisam mesmo ser rompidos para que alcancemos o saber sobre a natureza.
Se pensarmos esta questão a partir de outras tradições, percebemos que não é pertinente conceber qualquer cisão entre o corpo e a mente; o que há é uma interdependência natural. Para os iorubás, por exemplo, nós somos constituídos de dois tipos de poder: o agbara (o poder do corpo) e o axé (o poder espiritual). A capacidade de realização e a vivacidade se obtém a partir da integração entre os dois. Para os bantos bacongos, fortalecer o moyoo (a capacidade de realização a partir da incorporação de forças vitais) é fundamentalmente alimentar, de forma integrada, corpo e mente como unidades do ser.
Para as encantarias das matas brasileiras, o corpo é precisamente o elemento que nos coloca na condição disponível para que o ser se encante, transite, transe, naturalize nossos músculos, cartilagens, artérias e, ao mesmo tempo, humanize as folhas, raízes, águas, árvores. O encantado não é cindido: ele é corpo, mente, dança, repouso, silêncio, música, gente e praia. A própria concepção de corporeidade encantada não se limita ao corpo pensado apenas como um instrumento de motricidade: moram no corpo dimensões históricas, sociais, afetivas e espirituais.
A encantaria promove o cruzamento entre as diferenças que se encontram no arrebatamento. O encantado é aquele que se colocou disponível para mudar, alterar o corpo, transformar a experiência, atravessar e enxergar de outras formas a vida como caminho de negação peremptória da morte como estado de desencanto.
Vejo nisso um manancial para a elaboração de reflexões contestadoras de uma visão de mundo normatizada pelas gramáticas enfadonhas do desencanto. Para mim, neste aspecto, não há saída para a crise em que estamos mergulhados até o pescoço se nossas perspectivas de reconhecimento do mundo não forem ampliadas, inclusive no terreno fértil da teoria do conhecimento e das reflexões sobre o ser.
Não surpreende, por isso, que certo Brasil oficial, um projeto de estado-nação fundado na exploração da terra, na escravização, na domesticação e na normatização dos corpos, seja um empreendimento de destruição de corporeidades encantadas e não brancas. Os corpos que terreirizam-se, driblam, gingam, comemoram gols, dançam, transitam, amam, requebram, passeiam, festejam, arvoram-se, são aqueles que ameaçam, desconfortam e, como insubordinados e transgressores, precisam ser eliminados pela domesticação castradora ou pela aniquilação física.
O primeiro terreiro – espaço praticado a partir da disponibilidade para o encanto do ser no mundo – é o corpo. É por isso que ele é atacado pelo projeto de desvida que nos assombra. Mais do que o direito ao próprio corpo ser um direito à vida, ele é um direito ao encanto – aquilo que, incluindo a vida, vai muito além dela.
Os caboclos nos terreiros, afinal, ainda dançam no limiar dos mundos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Luiz Antonio Simas
É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.
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