Um dos mitos mais famosos que envolvem as culturas de terreiro conta que um dia Oxalá deu uma grande festa em sua casa e convidou os orixás e vários bichos, que naquela época falavam. Para comparecer, o convidado deveria apenas levar comida para um grande banquete.
O cágado queria ir, mas estava com preguiça de cozinhar , até que soube que o leopardo – incapaz até de fritar um acarajé – tinha inventado um instrumento musical para comparecer à festa e compensar a falta de dotes culinários: um tambor que rugia como os grandes felinos. O cágado entrou sorrateiro na casa do leopardo, roubou o tambor e foi para a casa de Oxalá.
O leopardo não teve o que levar e por isso passou a festa inteira do lado de fora da casa de Oxalá, acompanhando tudo por uma brecha da janela.
Quando escutou o cágado bater o tambor, o leopardo enfurecido invadiu a festa. O cágado recolheu a cabeça, mas o leopardo cravou as garras no casco do ladrão e o arranhou.
Oxalá, irritado com a confusão, determinou que o cágado ficasse com o casco marcado para sempre. Ele ainda passaria a andar com a lentidão da própria preguiça que sentiu e teria uma vida muito longa, para refletir sobre o que ocorreu. O leopardo isolou-se na floresta, onde resolveu viver solitário, já que não conseguiu conter o seu gênio furioso.
No meio da confusão, o tambor ficou esquecido em um canto da casa de Oxalá, mas a festa não podia parar. Exu, um músico exímio e orixá do poder da comunicação e da alegria dos corpos, recolheu o tambor e resolveu inventar ritmos que lembrassem as personalidades dos orixás presentes, para que todos pudessem dançar.
Para Xangô, orixá do fogo e das trovoadas, Exu tocou o alujá, um ritmo envolvente e forte como relâmpagos e labaredas. Para Oxum, tocou o ijexá, um ritmo sensual e amoroso como as águas do rio em que a deusa se banha. Para Iansã, a senhora das ventanias, tocou o ilú, que mais parece chamar os vendavais.
Não parou por aí. Para Ogum, seu irmão, Exu tocou o adarrum, um ritmo marcial que alegrou o orixá das guerras. Para Oxóssi, o senhor do arco e da flecha, tocou o aguerê, que conta a história de um caçador entrando na floresta atrás da presa. Para Oxumarê, orixá que rasteja como a cobra e voa como o arco-íris, tocou o bravum, que convida o corpo para que dance como a serpente que alcança o céu. Para Oxalá, tocou o igbin, lento como o passo do caramujo que ele representa.
Nenhum orixá deixou de ser saudado com um toque criado por Exu: Ossain, Ibeji, Omolu, Iemanjá, Obá, Euá, Nanã…
Desde esse dia, cada orixá tem um toque predileto, que respeita as características de cada um, sem que qualquer toque busque abafar o outro. Quando o som de qualquer um deles ressoa pelas florestas e terreiros, os orixás saem do Orum – espaço invisível onde moram – e vêm para o Ayê – o nosso mundo – dançar entre as crianças, mulheres e homens. Nessa hora, o cágado recolhe a cabeça e o leopardo corre feliz e solitário pelas florestas rugindo bem alto, respondendo ao rugido do tambor e dançando também.
Com este mito, os orixás nos mostram que as relações humanas devem se estabelecer cotidianamente a partir do respeito e do reconhecimento que há nas diferenças, como ensinam os toques diversos do tambor. É assim, afinal, que se fazem as grandes festas da beleza dos mundos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Luiz Antonio Simas
É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.
Leia também

IREE Webinar: Getúlio Vargas, ontem e hoje
Continue lendo...
Apresentação do mestrado Lobby, Corrupção e Ética Pública
Continue lendo...