A nova era da "plataformização" – IREE

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A nova era da “plataformização”

Yasser Hatia

Yasser Hatia
Administrador especialista em varejo e serviços



Na última década o mercado de trabalho vem passando por mudanças consideráveis, em particular com o avanço das plataformas online, que atuam principalmente no segmento de varejo e serviços. É inegável o impulso que essas plataformas têm dado a um número ilimitado de pequenos negócios, fomentando o empreendedorismo e criando alternativas variadas aos consumidores. Em particular nestes últimos anos, com as restrições trazidas pela covid, as plataformas se tornaram presentes no cotidiano de grande parcela da sociedade.  Mas é inegável também o fato de que, com base em seu vasto poder de mercado, as plataformas têm sustentado um modelo de grande pressão de custos para os empreendedores e de grande fragilidade quanto aos direitos de seus trabalhadores.

As principais categorias que surgiram dessas plataformas foram os motoristas privativos ou de carona e os entregadores de encomenda associados a aplicativos – como Uber, Ifood, Rappi, Loggi, entre outros. Tal crescimento na base de “prestadores de serviço” autônomos força a necessidade de um debate mais profundo da sociedade civil sobre como regulamentar a jornada de trabalho, remuneração mínima, transparência nas informações prestadas aos usuários, possibilidade de resposta mais justa frente aos usuários a eventuais boicotes e cancelamentos do aplicativo, medidas de segurança, apoio jurídico frente a ameaças ou agressões de clientes, entre vários outros temas relevantes. Isso porque, se por um lado esse sistema agiliza os negócios e cria oportunidades, por outro evidencia uma enorme lacuna na proteção dos trabalhadores envolvidos.

Nos Estados Unidos, grandes centros urbanos já estão tomando a frente nas iniciativas e buscam regulamentar minimamente a plataformização do trabalho, como fez o recém-eleito prefeito de Nova York ao anunciar um salário-mínimo de USD 17,96 por hora para os 65 mil entregadores que atuam na maior cidade da América do Norte, previsto para entrar em vigor no próximo dia 12 de julho. Chicago caminha na mesma direção e pode ser a próxima cidade a instituir um novo piso de remuneração para os trabalhadores associados a aplicativos.

As plataformas têm reagido a essas iniciativas, alegando que tais mudanças resultarão em novos custos que podem ser insustentáveis para este modelo de negócio, principalmente para os clientes, bem como pode impactar a receita de milhões de restaurantes, revendedores de produtos, motoristas, entregadores e empresas locais que atendem os consumidores num raio próximo ao seu local de atuação. Grandes embates devem envolver as plataformas, os trabalhadores e as autoridades dessas grandes cidades.

No Brasil, o cenário não é tão diferente. Recentemente, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa as principais plataformas, encomendou ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) uma pesquisa de mercado e análises frente a alguns fatos relevantes sobre este novo mercado de trabalho no Brasil. As conclusões deste trabalho mostram que atualmente a plataformização é ocupação de 1,66 milhão de pessoas, sendo 1.274.281 motoristas e 385.742 entregadores. Os pesquisadores utilizaram como base de dados os registros de empresas como 99, Ifood, Uber e Zé Delivery para demonstrar que na média a renda líquida (descontados custos de manutenção dos veículos) dos motoristas varia entre R$ 2.925,00 e R$ 4.756,00 e, no caso dos entregadores, entre R$ 1.980,00 e R$ 3.039,00 estimando jornada de 40 horas semanais, comparável aos trabalhadores que possuem carteira assinada.

Um grupo de estudos de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) publicou uma nota criticando os dados fornecidos pelo trabalho de pesquisa da Amobitec e Cebrap. Tal publicação alega que para o estudo foram consideradas 40 horas de trabalho ininterruptas, caso que não se aplica na prática, visto que o tempo de ociosidade dos entregadores e motoristas de aplicativos logados na plataforma está próximo de 40% diários, levando em consideração os intervalos entre corridas. É o chamado “tempo à disposição”. Além disso, a nota técnica demonstra que motoristas recebem na prática entre R$ 1.056,00 e R$ 1.672,00 por mês, após custos de manutenção, enquanto entregadores recebem entre R$ 480 e R$ 816,00, na medida em que o “tempo à disposição” é uma realidade e não é remunerado.

Uma coisa é certa, o debate sobre o novo mercado de trabalho das plataformas está bem polarizado. De um lado as empresas querem liberdade total com a regulamentação do trabalho e discutem apenas questões relativas ao direito previdenciário dos trabalhadores. O senador Rogério Marinho recentemente apresentou um projeto com esse conteúdo e entregadores e motoristas rejeitam totalmente esse projeto, dado que buscam direitos mais amplos com a regulamentação. Em paralelo, o Governo Federal criou uma mesa de negociações no Ministério do Trabalho com participação de empresas, trabalhadores e governo. Nestas negociações vários temas já foram levantados, como remuneração mínima, seguro acidentes, direitos previdenciários, entre outros. Mas como no debate público já está evidente a polarização de opiniões entre motoristas e entregadores por um lado e as plataformas por outro.

A solução que as grandes cidades americanas vêm tentando implementar com valores mínimos de remuneração por hora e a remuneração pelo “tempo à disposição” são importantes, porém a fragmentação do debate com a regionalização de medidas não é a melhor saída, pois a enorme base de trabalhadores necessita de uma regulamentação mais ampla e com validade nacional. Após essa etapa, as cidades poderiam fazer complementos legais que respeitassem as especificidades locais. Caso o debate fique a cargo das cidades é enorme o risco da solução se transformar numa “colcha de retalhos” e criar mais confusão.

Enfim, parece evidente que o problema é complexo e só pode ser resolvido com uma visão moderna das novas relações de trabalho. E moderno não significa a recusa dos direitos básicos dos trabalhadores ou, por outro lado, a proteção total do Estado nos moldes da engessada CLT. Uma visão moderna exige a construção de um debate permanente entre as partes, por exemplo tornando permanente a mesa de negociação criada pelo governo federal, promovendo uma legislação flexível e dinâmica, que possa ser ajustada, ampliada e aprimorada com o tempo.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Yasser Hatia

Empresário, graduado em administração de empresas pela FGV e aluno no curso de mestrado profissional em gestão com foco em varejo pela FGV. Iniciou sua carreira no mercado financeiro atuando na área de fusões e aquisições. Atualmente exerce atividade profissional no segmento de varejo e serviço.

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