Faruque, ventripotente rei do Egito, foi deposto em 1951 no meio de revoltas que derrubaram a monarquia no país. Zarpando de Alexandria no seu iate, Faruque cruzou o Mediterrâneo, se instalou em Mônaco com suas polpudas contas bancárias e continuou sua vida de playboy. Ficou célebre pelo vaticínio a respeito dos regimes monárquicos: “No ano 2000, só haverá cinco reis, o rei de Paus, o rei de Ouros, o rei de Copas, o rei de Espadas e o rei da Inglaterra”.
A profecia ganha novo relevo com o debate no Reino Unido sobre o futuro da Coroa. De fato, as interrogações sobre a monarquia têm se multiplicado, na sequência do envolvimento do príncipe Andrew com o milionário Jeffrey Epstein, que se suicidou depois de ter sido condenado por abusos sexuais, e da entrevista de Harry e Meghan a Oprah Winfrey, criticando as intrigas do Palácio de Buckingham.
No começo do mês de março, o jornalista independente Hamilton Nolan publicou no New York Times um artigo cujo titulo diz tudo: “Abaixo a monarquia britânica”. Na quinta-feira, 18 de março, o Guardian apresentou o podcast de Jonathan Freedland, um de seus editorialistas, com um título igualmente eloquente: “chegou a hora de abolir a monarquia britânica?”.
Freedland sublinha um ponto importante. O apoio ao republicanismo permanece baixo, contando com cerca de 20% de opiniões favoráveis na população britânica. Outra sondagem do último mês de dezembro mostrou que 79% dos britânicos consideram que a rainha teve uma atuação ótima ou boa durante seu reinado.
Porém, como observam Freedland e outros editorialistas, o prestígio da monarquia se confunde com a atual popularidade da rainha Elizabeth II. O apreço pela Coroa será o mesmo quando Charles subir ao trono, e mais adiante, quando William se tornar rei?
Sabe-se que rainha é a mais longeva chefe de Estado do mundo, e está no trono há quase 70 anos, encarnando a continuidade do Estado no Reino Unido e nos 15 países do Commonwealth. Quem assistiu a serie “The Crown” pôde ver que Elizabeth II atravessou quase incólume dramas públicos e privados vividos pela família real. Quase incólume, porque, em 1997, seu mutismo após a morte trágica da princesa Diana, mãe de Harry e William, futuro rei, chocou a maioria dos britânicos.
Mas há diferenças entre a situação atual e o drama de 1997. Além das repercussões negativas dos casos Andrew et Meghan, surgem questionamentos sobre a fortuna e as atividades de lobby dos Windsor. Assim, revelações do Guardian, mostraram que o Príncipe Charles e a rainha, em pleno conflito de interesses, intervieram na redação de projetos de lei que desfavoreciam suas prerrogativas fiscais ou fundiárias, usando um antigo atributo régio (“Queen’s Consent”).
Reagindo à notícia, a filósofa e escritora Christiana Lens escreveu na revista Prospect: “O lobby descoberto pelo Guardian, … revela uma verdadeira divergência entre a imagem de uma rainha estoica e benevolente e a realidade de uma instituição pouco transparente e determinada a proteger sua própria privacidade e fortuna”.
Neste contexto, as mudanças institucionais decorrentes do desentranhamento legal britânico da União Europeia, onde domina o Direito Positivado, podem alterar sensivelmente as prerrogativas da Coroa britânica.
Num artigo recente no Financial Times, a historiadora Linda Colley, especialista em história britânica, defende que chegou a hora de o Reino Unido se dotar de uma Constituição escrita, detalhada no papel. Como ela observa: “a situação do Reino Unido é realmente distinta e desviante, não porque faltam textos constitucionais, mas porque há textos demais”.
Da Carta Magna (1215) à jurisprudência mais contemporânea, passando pela Declaração de Direitos de 1689 (“Bill of Rights”), o quadro constitucional britânico se transformou “num deserto sem pistas, mapas ou compasso”, nas definição de Lord Tom Bingham, alta autoridade do judiciário britânico citado por Linda Colley.
As propostas de mudanças incluem a instauração de um verdadeiro federalismo. Defendido notadamente pelo Partido Liberal Democrata como solução para ampliar as liberdades regionais no Reino Unido pós-Brexit e pós-pandemia, o federalismo enfraqueceria o Parlamento de Westminster e da Inglaterra, em benefício dos parlamentos da Escócia, do País de Gales e da assembleia da Irlanda do Norte.
Se tais reformas forem implementadas no Reino Unido, haverá um reforço dos movimentos independentistas e republicanos. Todos os especialistas consideram que a abolição da monarquia engendrará enormes problemas institucionais e políticos no Reino Unido. Mas era também o que se dizia, e se diz, do Brexit, que foi votado e implementado aos trancos e barrancos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Luiz Felipe de Alencastro
É historiador e cientista político, professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV e professor emérito da Sorbonne Université.