A modernização da Lei de Drogas – IREE

Análises e Editorial

A modernização da Lei de Drogas

O debate sobre a política de drogas no Brasil ganhou um novo ingrediente com a apresentação de uma proposta de alteração da Lei de Entorpecentes (11.343/2006) elaborada por uma comissão de juristas a pedido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Os pontos de maior destaque do anteprojeto são a descriminalização do uso de drogas e a diferenciação de usuário e traficante a partir de critérios objetivos, com base na quantidade de droga portada.

O anteprojeto é um primeiro passo para a atualização da lei. Cabe ao Congresso dar seguimento às discussões.

Encarceramento e problemas sociais

A proposta buscou trazer respostas a críticas à Lei 11.343/2006, apontada como uma das responsáveis pelo vertiginoso aumento da população carcerária no Brasil nos últimos anos.

De acordo com Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em 2006, quando a lei entrou em vigor, eram 400 mil presos no País, 14% por crimes de drogas. Dez anos depois, eram 730 mil encarcerados, dos quais 28% enquadrado pela Lei de Entorpecentes.

Os números fazem do Brasil o terceiro país com maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

Dados mostram um impacto significativo do aumento do encarceramento de mulheres e jovens negros. Segundo o Infopen, o número de mulheres presas no Brasil subiu 102% de 2004 para 2014, sendo 63% das prisões por participação no tráfico.

O Infopen também mostra que três anos atrás, 64% dos presos eram pretos e pardos,  e 41% eram jovens de 18 a 29 anos.

Pesquisas de ONGs com dados de São Paulo e Rio de Janeiro apontam que a maioria dos presos em flagrante e denunciados por tráfico de drogas é de jovens de baixa escolaridade, além de confirmarem a maioria de negros entre os presos.

Outra característica que chama atenção nas pesquisas que qualificam as prisões por tráfico de drogas é a grande quantidade de detidos sem antecedentes criminais e que declaram serem usuários. Os dados indicam o crescimento do encarceramento de pequenos traficantes, e as ONGs denunciam a possibilidade de prisão de usuários injustamente.

Experiências internacionais

A busca de soluções para o problema não é simples e faz parte de um debate mundial sobre segurança pública e saúde.

No mundo, o Canadá e o Uruguai são os únicos países que legalizaram o uso recreativo da maconha, além de oito Estados nos Estados Unidos: Califórnia, Colorado, Alasca, Nevada, Oregon, Maine e Massachusetts. Para tornar legal o consumo da erva, esses locais tiveram que regulamentar o cultivo, a distribuição e a venda da maconha, cada um com suas especificidades.

Portugal tem uma experiência diferente, com descriminalização da aquisição, da posse e do consumo de qualquer tipo de droga, apesar dos atos continuarem a ser puníveis por lei.

A Holanda, famosa pelo consumo da maconha e do haxixe, nunca legalizou o uso recreativo da erva. Em 1976 a posse de até 30 gramas foi descriminalizada e o uso tolerado, e anos depois regularam a venda e o consumo das duas drogas em coffees shops.

No Brasil, enquanto setores favoráveis à flexibilização apontam que a criminalização das drogas não é eficaz para conter a violência e pune de maneira desigual a população mais vulnerável, defensores do modelo mais proibicionista enxergam a legislação brasileira como avançada e identificam falhas na aplicação no Judiciário e na falta de investimento social complementar à política de combate às drogas.

O que diz a lei vigente

A Lei 11.343/2006 estabeleceu uma política nacional sobre drogas e trouxe distinções de medidas para usuários e traficantes. Foi a partir dessa lei que o usuário não pôde mais ser preso em flagrante e passou a receber penas alternativas como advertências e prestação de serviços à comunidade.

Até então, a Lei de Tóxicos (6.368/1976) previa a internação compulsória de dependentes e a condenação de usuários com 6 meses a 2 anos de prisão. Apesar da flexibilização trazida pela lei de 2006, o porte e uso de drogas, assim como o cultivo para uso próprio, continuam sendo crimes.

Para os traficantes, foram endurecidas as penas de prisão, o que explicaria o aumento de encarcerados por crime de drogas após a legislação de 2016. Penas de 5 a 15 anos são previstas para quem cultiva, importa, exporta e guarda substâncias ilícitas.

Diferenciar o usuário do traficante é papel do juiz, que, segundo a lei, “atenderá à natureza da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (art. 28).

O que defende o anteprojeto

De acordo com o ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que presidiu a comissão para a proposta de alteração da Lei de Entorpecentes, o anteprojeto aprimora a proteção ao usuário e intensifica a repressão ao tráfico.

“A legislação atual falhou, e a atualização dessa lei é um tema que interessa a toda a sociedade”, disse Dantas. O ministro destaca a mudança na tipificação dos crimes, com penas maiores para tráfico organizado e penas mais brandas para pequenos traficantes.

Uma das preocupações é abrandar penas de quem vende drogas para sustentar seu consumo, por exemplo, ou que são coagidas a levar entorpecentes para dentro de presídios, caso comum entre mulheres. Para o ministro, da forma como a lei está hoje, o encarceramento em massa cria “soldados para o tráfico” sem sinais de impacto sobre redução de consumo.

Quais são as ressalvas

Para advogado Leandro Daiello, ex-Diretor-Geral da Polícia Federal, estabelecer por meio da quantidade de droga portada quem é usuário ou traficante não resolverá o problema da criminalidade nem do aumento da população carcerária.

A ideia de adotar quantidades objetivas já foi levantada no Supremo Tribunal Federal, e na época também foi criticada pela possibilidade do tráfico se adaptar à nova regra, adotando o porte permitido pela Justiça. Outro problema seria uma regra rígida punir automaticamente usuários que tenham mais droga do que o permitido.

“Não me parece uma proposta eficiente, pois tanto é possível haver usuários portando grande quantidade de drogas, quanto traficantes com pequena quantidade. O que define usuário ou traficante é a investigação e o processo, que precisam ser criteriosos e bem preparados”, diz Daiello em entrevista ao IREE.

Para o ex-diretor da PF, o problema está na forma com que o processo é encaminhado, e não na lei em si. “Para se prender um traficante, é preciso investigar. E aí existe a diferença entre quem trabalha para o crime e quem vende drogas para poder consumir, por exemplo”, avalia ele.

Daiello também é crítico da ideia de que prender é a solução para o problema das drogas e defende que o encarceramento seja voltado apenas para caso de risco à sociedade. “Mas falta uma retaguarda para lidar com casos que não deveriam ser encaminhados para a carceragem. Sem falar nas péssimas condições dos presídios, o que também precisa ser solucionado”, diz.

Outra ressalva levantada por Daiello diz respeito à descriminalização do uso. Segundo ele, é preciso pensar na dificuldade que o Brasil tem para controlar as drogas legais, como o caso do cigarro, que têm um mercado paralelo forte ainda hoje. “O problema é o mercado paralelo, legalizar uma droga não permite que automaticamente se tenha controle sobre o seu mercado”, diz ele.

Perspectivas

A transformação do anteprojeto em projeto de lei e sua futura aprovação dependerá do encaminhamento no Congresso. A proposta conta com o apoio do presidente da Câmara, que é o responsável por definir como a proposta deverá tramitar, mas pode encontrar resistência, devido à composição mais conservadora do parlamento.

Alguns sinais, no entanto, indicam que pode haver algum avanço sobre o debate. O deputado João Campos (PRB-GO), por exemplo, apesar de ser contra a descriminalização do uso, já se manifestou favorável à discussão do tema.

De qualquer forma, é provável que uma definição sobre o tema venha antes do STF, que marcou para 5 de junho deste ano o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal.

O caso começou a ser julgado em 2015 e três ministros já votaram a favor da descriminalização do consumo de drogas, sendo que dois votos restringiram a decisão à maconha. A decisão do STF tem repercussão geral, com efeito em todas as ações que tramitam no país.



Por Samantha Maia

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