A mineração em terras indígenas e o julgamento implacável da História – IREE

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A mineração em terras indígenas e o julgamento implacável da História

Antonio Carlos Bigonha

Antonio Carlos Bigonha
Compositor, pianista e Subprocurador-Geral da República



O antropólogo Pacheco de Oliveira[i] afirma que os povos indígenas do Brasil estão tão distantes das culturas neolíticas colombianas, das quais descendem, quanto os demais brasileiros estão distantes da sociedade portuguesa do século XV, que os colonizou. Uns e outros podem até se considerar guardiães de sua ancestralidade a partir de pontos de continuidade que precisam, em cada caso, ser detidamente examinados e avaliados. As mais de 150 línguas indígenas faladas no Brasil, de um lado, e a consolidação do português como idioma oficial, de outro, são exemplos eloquentes da persistência de elementos autóctones e coloniais na formação de nossa identidade.

Esta tensão entre continuidade e disrupção, sobre a qual laboram diuturnamente os historiadores, e é própria das comunidades humanas, compõe o contexto no qual os discursos de autenticidade e de pureza esvaziam-se de sentido, como na ponderação de Radhakrishman[ii]: por que não posso ser indiano sem ser autenticamente indiano? Diria o indígena: por que deixo de ser índio apenas pelo fato de portar um telefone celular? Stuart Hall[iii] afirma, nesta mesma direção, que não há na própria Europa Ocidental, sede da campanha colonial iniciada no século XVI, qualquer nação composta a partir de um único povo, uma única cultura ou uma mesma etnia: as nações modernas são todas híbridos culturais, para desespero do Fürher e de seu 3º Reich.

Esta heterogeneidade, característica não só da formação dos povos europeus, mas da gente de todo o planeta, não impediu que, mesmo após a recente formação da união europeia, italianos, franceses, alemães, portugueses ou ingleses continuassem extremamente ciosos daquilo que são e que os distinguiria uns dos outros e das demais nações. Considerando o caráter não-estrutural, dinâmico e virtual das culturas, como afirma Barth[iv], é intrigante a insistência de setores da sociedade brasileira na necessidade de uma suposta integração das comunidades indígenas à vida nacional, embora seus ancestrais aqui já estivessem antes mesmo da chegada dos portugueses ao continente e estes mesmos já fossem resultado de intensa miscigenação.

Assim como comer apenas peixe com fritas não confere a ninguém a nacionalidade inglesa, assim como o hábito de ouvir e tocar apenas jazz não é suficiente para nos fazer merecer um green card estadunidense, o fato de indivíduos indígenas vestirem jeans ou dirigirem automóveis não os desloca de sua cultura ou altera sua posição de fora para o centro da comunidade nacional. Esta ambiguidade espacial revela, na verdade, um resquício típico do processo de ocupação colonial ocorrido a partir de 1492, no qual, como afirma Quijano[v], o exercício da autoridade política, o controle dos recursos de produção e a disciplina do trabalho eram monopolizados pela metrópole em detrimento das diversas identidades locais. Os territórios ocupados a partir do Século XVI receberiam a denominação de América Latina, habitat dos humanos de fora. E a Europa, de seus usurpadores, a morada dos humanos de dentro.

Consolidou-se, a partir de então, uma ideia de humanidade que tinha na Europa o seu centro identitário, como afirmação de perfeição e superioridade, em contraste com a periferia primitiva e irracional. Um conceito de humanidade necessário à submissão das comunidades selvagens, obrigadas a prover os meios indispensáveis à expansão do capitalismo mundial. A perspectiva integracionista, que vigeu em nosso ordenamento jurídico durante o Brasil colônia, por todo império e em grande parte da República no Século XX, foi herdeira desta tradição: os indígenas, desde o início da ocupação, deveriam assumir paulatinamente seu papel como trabalhadores ordinários, preferencialmente agricultores, e os recursos naturais de seus territórios deveriam ser apropriados pelo centro civilizado, como insumo indispensável à promoção do progresso. O Serviço de Proteção do Índio, criado no ano de 1910, tinha precipuamente esta missão.

Foi o ressurgimento da democracia, na segunda metade da década de 1980, com o fim da ditadura civil-militar instaurada no Brasil em 1964, que reconheceu aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos sobre seus territórios, competindo ao Poder Público demarcá-los, protegê-los e respeitá-los. Foi a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 que proclamou, com primazia, a unidade da sociedade brasileira, pela revogação da tutela civil a que os indígenas estavam submetidos no velho regime, com a vedação de qualquer política pública de aculturação integracionista. Uma unidade que, segundo uma perspectiva decolonial, respeitava a diversidade dos povos tradicionais como elemento constituinte de nossa identidade.

Voltando a Pacheco de Oliveira, se nos admitirmos descendentes dos colonizadores e, ao mesmo tempo, herdeiros das populações tradicionais que habitavam este continente antes do início da ocupação europeia, damo-nos conta dos incontáveis processos de fricção étnica que possibilitaram a conformação e acomodação dos vários segmentos que resultaram no povo brasileiro ao longo dos últimos quinhentos anos. Como alerta Cardoso de Oliveira[vi], o fulcro dessa análise deve ser as relações estabelecidas entre as populações ou sociedades em causa, em suas múltiplas dimensões, e não apenas uma investigação focada no confronto de culturas. De fato, carece de qualquer sentido lógico ou pragmático o debate sobre integração, conquanto se pretenda promovê-lo de boa-fé, passados mais de cinco séculos de convivência e contato entre indígenas e não-indígenas. O que resta sobre o território brasileiro, guardadas as peculiaridades culturais, é nada mais do que um amálgama, resultado de confrontos, negociações, rupturas e consensos inerentes a qualquer comunidade humana: nada mais há, portanto, a integrar, guardadas as peculiaridades de cada segmento que compõe a sociedade brasileira.

O desafio é saber como devemos proceder para respeitar essa diversidade. François Hartog[vii] afirma que para fazer justiça às peculiaridades das diversas culturas é necessário começar por reconhecer que todas as sociedades estão na história, mas que a noção de tempo não é a mesma para todos. Daí a crítica ao falso evolucionismo, que, de forma disfarçada, veste a máscara do integracionismo ao considerar o indígena como um ser humano em um estágio anterior à civilização, preso a um passado pré-histórico, do qual mereceria ser libertado. Reconhecê-lo no tempo presente, vencendo um anacronismo estrutural, importaria em admitir, ao contrário, que suas tradições não constituem um entrave ao progresso e que se reportam a outras temporalidades e cosmogonia. Em um mundo assombrado pela devastação ambiental, a atenção às epistemologias do Sul, inclusive ao conhecimento produzido pelas populações tradicionais, como observa Boaventura de Sousa Santos[viii], poderia abrir um caminho a viabilizar a mitigação de certos postulados da modernidade europeia que conduziram a humanidade ao iminente risco de extinção.

É digna de nota, neste sentido, a falência das epistemologias do norte, que expuseram mais uma vez o mundo ao atual impasse militar e nuclear no oriente da Europa, mesmo após a vergonha do Shoah, promovida no coração do Velho Continente, em meados do século XX. Uma cultura que promoveu ciência capaz de produzir maravilhas tecnológicas e, ao mesmo tempo, os meios para a extinção da espécie humana. O que, para Jacques Revel[ix], instaura a “crise do porvir”. Um componente essencial de nossa relação atual com o tempo histórico, ante a perda da confiança nas perspectivas de progresso formuladas pela modernidade. O futuro percebido não mais como promessa, mas como ameaça, sob a forma de catástrofes, um tempo de catástrofes que nós mesmos provocamos, como denuncia François Hartog[x].

Catástrofes como aquelas promovidas pelas empresas de mineração Samarco, em Minas Gerais, no município de Mariana, e pela Vale S.A, na barragem de rejeitos Córrego do Feijão, em Brumadinho, na década passada. Malgrado as mais de 250 mortes de cidadãos brasileiros e a devastação decorrente desses eventos de forte impacto socioambiental, os negócios no setor continuam de vento em popa, compondo cerca de 4% do PIB nacional, uma das atividades extrativistas mais tradicionais do Brasil, desde o período colonial. Em uma postura que parece aceitar a morte de inocentes e a destruição do meio ambiente como um risco inerente ao lucro de empresas estrangeiras que operam no País, o Estado brasileiro planeja agora expandir essa atividade sobre os territórios indígenas. Em março deste ano, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o PL 191/2020, de iniciativa do presidente da República, que pretende regulamentar a matéria, apesar de o texto do projeto ser flagrantemente contrário à Constituição. O que já anuncia um terceiro turno de debates no Supremo Tribunal Federal.

Em abril de 2019, o presidente da República já manifestava a intenção de promover atividades minerárias em territórios tradicionais, ao afirmar que só o estado de Roraima deteria três trilhões de reais embaixo da terra e o índio deveria ter o direito de explorar essas riquezas de forma racional, para não continuar sendo um pobre em cima de uma terra rica. Algo dito em pleno século XXI, mas que reafirma um discurso que já era pronunciado quando as primeiras caravelas atracaram em Porto Seguro. São palavras do descendente do colonizador que apenas confirmaram as promessas feitas à bancada ruralista durante a campanha eleitoral e configuram uma ruptura rude com o dever de demarcar, proteger e respeitar os direitos indígenas, nos termos da Constituição. Fiel a uma estratégia diversionista, recentemente S. Exa. afirmou que a imediata liberação da exploração mineral livraria o Brasil da importação de fertilizantes, essenciais ao agronegócio, provenientes da Rússia. Conseguiu a proeza de misturar o pior das agendas geopolítica e socioambiental. Nem o Instituto Brasileiro de Mineração, órgão responsável pelo lobby das mineradoras no País, levou a sério a fala do Palácio do Planalto.

A história da humanidade, ao contrário do que supunha Leibniz, não é um romance escrito por Deus, ela é um construto humano, resultado da atividade interpretativa dos historiadores. E os exemplos do passado, ainda que valorosos, chegam sempre muito tarde, como alerta Reinhart Koselleck[xi]. Não podemos esperar que a Historia magistra vitae julgue, no futuro, nossos atos e omissões com a isenção e com a coragem de que não fomos capazes de nos investir no presente, na defesa de nossos territórios tradicionais, de nossa gente e de nossas riquezas naturais. E então não estamos mais falando de nós brasileiros fazendo justiça a eles, indígenas. Estamos falando apenas de nós mesmos e do que nos distingue e aproxima dos demais povos do planeta.

 

Referências

[i]     OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana (UFRJ), vol. 4, n. 1, p. 47-77, 1998.

[ii]    Apud Idem, pág. 68.

[iii]   HALL, Sutart, A identidade Cultural na pós modernidade, Rio de Janeiro: Lamparina, 2014, pag. 36.

[iv]   1984. “Problems in Conceptualizing Cultural Pluralism, with Illustrations from Somar”. In: D. Maybury-Lewis (ed.), The Prospects for Plural Societies. Washington, D.C.: The American Ethnological Society.

[v]    QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina – CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf

[vi]   OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Problemas e hipóteses relativos à fricção interétnica: sugestões para uma metodologia. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vol. IV, n. 1, p. 42.

[vii]  HARTOG, François. O olhar distanciado: Lévi-Strauss e a história. IN.: ________. Evidência na História. O que os historiadores veem. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 194.

[viii] SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul – 1ª Ed. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2019. Pg. 17.

[ix]   REVEL, Jacques. Cultura, culturas: uma perspectiva historiográfica. IN.: ________. Proposições: ensaios de história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2009, p. 98.

[x]    HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiência do tempo – 1a. Edição – Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2021, pg. 15

[xi]   KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado, Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto. Ed. PUC-Rio, 2006, pg.60.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Antonio Carlos Bigonha

É compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).

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