O professor Antonio Candido, em seu inspiradíssimo texto O Direito à Literatura, explanou de todas as maneiras a importância da literatura como um direito humano. “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”, comenta ele. Mais adiante: “a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis de cultura”. E completa: “Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”.
Antonio Candido não se limitava a enxergar só os benefícios intelectuais e de entretenimento que a leitura traz ao ser humano, mas as condições para que todas as camadas sociais tenham acesso ao livro: “Em princípio, só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil, onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura”.
A educação em nosso país sempre foi um privilégio das elites que matriculam seus filhos em boas escolas particulares, embora as grandes capitais mantivessem até há pouco algumas escolas-modelo públicas, gratuitas e disputadíssimas. Essas raras escolas de excelência, como a Pedro II, no Rio de Janeiro, devido aos cortes de verbas federais caminham para um quase certo fim que outras já tiveram.
Independentemente da pandemia e da falta de equipamentos dos alunos pobres para acompanhar aulas virtuais, os censos anteriores a 2020 já apontavam o abandono das escolas a partir dos catorze anos, em média. Ainda não há como se dimensionar as consequências da desistência dos estudos em todos os níveis. As escolas públicas no geral, mas em especial as de periferias das grandes cidades e regiões rurais, são mal distribuídas, mal cuidadas, com professores mal pagos e desestimulados. Isso já basta para compreender a dificuldade de aprendizado dos alunos que, em parte, abandonam os estudos antes de completar o nível médio. Também é o suficiente para se deduzir que esses jovens sintam considerável dificuldade na leitura.
No entanto, alguns programas estimulantes à frequência escolar, como o Bolsa Família, de 2004, colaboraram para que crianças e jovens seguissem estudando, ao invés de trocar o estudo por algum trabalho que complementasse o orçamento familiar.
Mais especificamente voltado para a leitura, foi lançado em 2006 o Prêmio Vivaleitura e, na abertura da XV Bienal do Livro, em 2011, a Presidenta Dilma assinou, em conjunto com os ministros da Cultura e da Educação, o decreto que institucionalizou o Plano Nacional do Livro e Leitura, uma ação conjunta do antigo Ministério da Cultura (MinC) e do Ministério da Educação (MEC).
Um dos principais programas de distribuição de livros pelo MEC era o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), encarregado de executar os programas sociais do livro, tais como o Programa Nacional da Biblioteca na Escola (PNBE) e o Programa Nacional do Livro Didático, voltados para estudantes e professores registrados nos ensinos fundamental e médio das escolas públicas federais e redes de ensino estadual, municipal e do Distrito Federal.
No entanto, devido à desorientação do atual governo, o Programa Nacional do Livro Didático, existente desde 1937, organizado com dois a três anos de antecedência, dá sinais de que pode vir a atrasar ou ser interrompido em 2023. Por outro lado, vale registrar o vultoso aumento de investimento em educação desde 2004 até 2015 e, em especial, entre 2008 e 2013, quando os valores praticamente dobraram, saltando de R$ 66,7 bilhões para R$ 126,7 bilhões.
Também em 2011, numa reunião que tive com a Presidenta Dilma em conjunto com Galeno Amorim, então Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, apresentamos o projeto do livro popular, visando barateá-lo e torná-lo mais acessível ao público. O Programa do Livro Popular foi iniciado como um piloto voltado para bibliotecas estaduais, municipais, comunitárias e rurais, das quais foram atendidas em 2012 mais de duas mil em quase 1500 municípios de todos os estados brasileiros. Para a segunda etapa, havia sido programado o lançamento com distribuição em pontos de vendas ao consumidor uma coleção de 400 títulos ao preço máximo de R$10. No entanto, com a nossa saída, essa segunda etapa foi suspensa pela sucessora no Ministério.
Ao constatar a ausência de livrarias na maior parte dos nossos municípios, a FBM e o MinC buscaram formas paliativas de fazer com que os livros chegassem aos mais distantes rincões do país, criando assim o Circuito Nacional de Feiras de livros e Festivais de Literatura: fomento às feiras que já existiam e lançamento de editais públicos em parcerias com governos estaduais, municipais e organizações privadas responsáveis por elas, independentemente do que as próprias captassem pela Lei Rouanet. Do primeiro para o segundo ano, as feiras dobraram em número e, no segundo, 15 milhões de leitores participaram do Circuito Nacional de Feiras de Livro.
A Caravana de Escritores foi mais uma ação de aproximação da população – em especial os jovens – com o livro, ao levar 181 escritores de todas as regiões geográficas a percorrer, em 75 caravanas, dez estados brasileiros e trocar ideias com o público sobre livros e literatura.
Outro projeto de grande sucesso foi o das Bibliotecas Mais Cultura, inspirado nos modelos das Bibliotecas Parque de Bogotá e de Medellín. Havia também “Agentes de Leitura”, previsto para ser integrado às bibliotecas públicas municipais e escolares, aos Pontos de Leitura e ao projeto Arca das Letras, do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Esses jovens, os agentes, foram selecionados e preparados para levar o livro e o interesse pela leitura a comunidades carentes. Com um kit formado por bicicleta, livros e mochila, passavam a visitar casas, reunir moradores para promover a leitura, emprestar livros e voltar para rediscutir o conteúdo lido após 20 dias.
Em decorrência do enorme interesse político, econômico, social e cultural que o Brasil despertava internacionalmente na primeira década e início da segunda deste século, resolvemos incrementar o Programa de Apoio à Tradução e uma maior participação em feiras internacionais de livros. Em relação ao primeiro destinamos, contando com apoio do Itamaraty, um enorme reforço: de julho de 2011 a dezembro de 2012, foram aprovadas 177 novas traduções do português para outras línguas, o que equivale a mais de 100% de todas as concedidas nas duas décadas anteriores.
O reflexo da magnitude de nosso país pôde ser confirmado pelos convites que viemos a receber de prestigiadas feiras internacionais para figurarmos como país (e por extensão, cultura) homenageado em feiras de livros como as de Bogotá, Frankfurt, Bolonha, Paris, Londres e Nova York. Infelizmente, após sairmos do MinC, minha sucessora não se interessou em dar prosseguimento aos compromissos e, depois da Feira de Frankfurt, os demais acordos foram cancelados.
Esses relatos de um passado recente em que nosso país foi altamente admirado e apontado como modelo nos parecem hoje uma utopia. Motivo por ter me sentido forçada a testemunhar nossa tentativa de concretizar as ideias de Antonio Candido para nossa terra. Projetos e programas foram cancelados ou suspensos, mas a crença da leitura como um direito inalienável e de que, no futuro, de alguma forma isso se concretizará, permanece.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ana de Hollanda
É cantora, compositora e ex-Ministra da Cultura. Além do trabalho na música, com cinco discos gravados, Ana estudou artes cênicas, foi atriz, dramaturga e produtora cultural. Foi Coordenadora de Música do Centro Cultural São Paulo, Secretária de Cultura do Município de Osasco, Diretora do Centro de Música da Funarte e vice-Presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
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