A inflação do "Estado mínimo" – IREE

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A inflação do “Estado mínimo”

Guilherme Mello

Guilherme Mello
Economista e sociólogo



O mundo atravessa um período de forte pressão inflacionária após a pandemia. No Brasil, essas pressões são ainda mais pronunciadas em virtude da forte desvalorização cambial. Compreender as raízes da inflação global (ou mesmo da brasileira) exige ir além de considerações acerca de eventuais dilemas na condução da política monetária e/ou do impacto da pandemia sobre as cadeias produtivas. É preciso compreender as raízes estruturais que ajudam a explicar a dificuldade de controlar a alta dos preços no capitalismo atual. Em grande medida, essas raízes se encontram no desmonte do Estado e na liberalização financeira.

Talvez a causa central da pressão inflacionária atual se encontre na ruptura das cadeias produtivas e na escassez de insumos provocada pelas paralisações em diversas empresas decorrentes da pandemia. É evidente que o choque de oferta produzido pela pandemia não é algo antecipável e teria consequências sobre as cadeias independente do arranjo produtivo vigente. Mas esse problema ganhou enormes proporções devido a dois fatores estruturais: a organização das empresas em “cadeias globais de valor” (CGV) e eliminação de estoques como mecanismo de controle de custos, decorrente da abordagem just in time. Essas formas de organização da produção capitalista são típicas do que se costumou chamar de período “neoliberal”, marcado pela abertura comercial e financeira, além do desmonte do Estado indutor, empreendedor e regulador.

A constituição das cadeias globais de valor (CGV) se assenta sob a base da arbitragem regulatória fiscal e trabalhista. O capital se desloca para onde os custos são menores, buscando incessantemente ganhos de competitividade e promovendo uma “leilão regulatório” global, onde recebe investimentos o país que oferece menos direitos aos trabalhadores e cobra menos tributos.

A ampliação das CGV, muito mais do que qualquer arranjo milagroso de política econômica (como alguns enxergam o regime de metas), é a causa estrutural por detrás da estabilidade de preços entre o final da década de 90 e meados da década de 2000. O lado negativo mais evidente desse movimento foi aumento da desigualdade social, o processo de desindustrialização no centro e setores da periferia (como a América Latina) e a estagnação salarial.

Essa forma de organização da produção também se esforçou para reduzir os custos logísticos e de armazenagem através da estratégia “just in time”, eliminando estoques e viabilizando a fragmentação das etapas da cadeia produtiva. Com a pandemia, ficamos conhecendo outras fragilidades até então minimizadas pelos analistas, como o risco de ruptura de vários elos das cadeias de fornecimento e o custo real da ausência de estoques reguladores, em particular de alimentos. Em momentos de escassez global, a aposta na importação como mecanismo de abastecimento e estabilização de preços se mostra inadequada.

Mas não foi só no aspecto produtivo que as mudanças no capitalismo global afetaram negativamente a possibilidade de estabilização do nível de preços e de atividade. O processo de “financeirização”, coirmão das mudanças na configuração das empresas e na organização da produção capitalista global, também contribuiu decisivamente para a instabilidade econômica, em particular em países periféricos de moeda fraca, como é o caso do Brasil.

O abandono de instrumentos de regulação da entrada e saída de capitais foi parcialmente compensado apenas na década de 2000, após diversas crises de balanço de pagamentos em países em desenvolvimento, através da acumulação (custosa) de reservas internacionais. Mesmo com essa salvaguarda, a instabilidade financeira recorrente do capitalismo global afeta diretamente as moedas periféricas, que se tornaram alvo constante de especulação e são sempre desproporcionalmente desvalorizadas nos momentos de reversão do ciclo global de liquidez.

Talvez um dos exemplos mais perfeitos dessa combinação perigosa entre desregulamentação e destruição do Estado seja o Brasil de Temer-Bolsonaro. Do ponto de vista produtivo, o acelerado processo de desindustrialização brasileiro nos deixou cada vez mais dependentes da importação de insumos e produtos mais sofisticados. Em um momento de ruptura das cadeias globais de produção, nossa extrema dependência se reflete em encarecimento e eventualmente em escassez dos insumos produtivos, como foi o caso exemplar do IFA para vacinas contra a COVID-19.

Agravando esta fragilidade está a instabilidade do real, causada tanto por erros na condução da política monetária, quanto a crescente liberalização dos mercados especulativos que negociam a moeda brasileira, abrindo-se mão de qualquer perspectiva de controle de capitais e instrumentos de intervenção nos mercados futuros de câmbio, locus de transmissão das pressões especulativas contra nossa moeda.

Além disso, os governos Temer e Bolsonaro avançaram rapidamente na desnacionalização as empresas brasileiras, como no caso da privatização de diversas empresas ligadas a Petrobras. Ao adotar uma política de preços “dolarizada” e uma estratégia de desinvestimento acelerado, abrindo mão da capacidade de gestão da empresa no mercado de derivados do petróleo, a dupla Temer-Bolsonaro eliminou qualquer possibilidade de estabilização desses insumos energéticos fundamentais.

Para “fechar a fatura”, a estratégia neoliberal brasileira também promoveu o desmonte dos estoques reguladores (CONAB), do financiamento a agricultura familiar e das políticas de preservação ambiental. Sobre este último tópico, a recente crise hídrica e o encarecimento do custo da energia elétrica são apenas os primeiros sinais de uma crise muito mais profunda, decorrente do aumento expressivo do desmatamento ilegal e das queimadas.

Essa combinação de dependência de insumos importados (em particular fertilizantes e combustíveis), dolarização dos preços dos combustíveis, desregulamentação e instabilidade do mercado de câmbio, fim dos estoques reguladores e impactos adversos do desmonte das políticas de preservação ambiental explica em grande medida a carestia que atualmente condena 20 milhões de brasileiros à fome.

Diferentemente do que defendem alguns economistas, nossa inflação não é causada pela ação do Estado, por excesso de consumo ou por déficits fiscais. Estamos vivendo a inflação do “Estado mínimo” neoliberal, marcado pela liberalização financeira, fragmentação produtiva e pelo desmonte do Estado. Enquanto no Brasil discutimos a privatização total da Petrobras, da Eletrobras e uma nova rodada de liberalização do mercado de câmbio (que pode nos aproximar do dramático caso da Argentina), no resto do mundo os líderes políticos caminham, ao lado do debate econômico mais avançado, em busca de uma transição produtiva e ecológica baseada no investimento público e no papel indutor/coordenador do Estado.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Guilherme Mello

É economista e sociólogo, com mestrado em Economia Política pela PUC-SP e doutorado em Ciências Econômicas pela Unicamp. É professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAMP. Foi assessor econômico para a campanha de Fernando Haddad à Presidência da República em 2018.

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