Falam de superpopulação, mas pelas minhas contas estamos caminhando para a extinção, estamos minguando. Senão, vejamos: cada um de nós tem um par de pais, o propriamente dito e a mãe. Estou me referindo a gametas, bem entendido.
-Ah, mas eu não conheço meu pai, ele me abandonou.
Não tem problema, o fato é que houve um na sua concepção, e o caráter dele não entra na equação. E cada um deles igualmente teve dois pais, seus avós: 4. Cada um deles mais dois, então você tem 8 bisavós. Logo, 16 trisavós, 32 tetravós, e por aí vai. Usando meu próprio exemplo, nasci nos anos 60; meus pais, nos 30, meus avós, no início do século XX. Uma geração de Dias a cada 33 anos, mais ou menos. Os tais trisavós estavam flanando pela Europa por volta de 1800. Em 1700 éramos 256, e quando Cabral aportou aqui, havia 16.384 antepassados meus espalhados por esse mundão de Deus. No ano mil, façam as contas, 536.870.912 Dias – e TODOS vivos, ao menos no momento em que fornicaram para chegar a esse ápice da criação, eu.
Então vejamos: no ano 2000 existe apenas UM Ricardo Dias – e não tenho irmãos de sangue. No mesmo ano, 2000, havia no mundo 6 bilhões de pessoas. Supondo que todos tenham um irmão, os pais e pelo menos 2 avós vivos, apenas para simplificar, havia há pouco 1 bilhão de núcleos familiares. Cada um com o mesmo número médio de ascendentes que eu; logo, no ano 1000 havia cerca de 537.000.000.000.000.000 de pessoas no mundo. 500 quatrilhões de pessoas. E lembrando que 33 anos antes havia o dobro, e assim por diante. Como disse, estamos caminhando céleres para a extinção da raça humana.
Com esses pensamentos perturbadores, fui ao mercado. Numa dada lata de tomates, havia o seguinte texto: “Nesta lata há 6 tomates”. A informação ficou arquivada num canto qualquer de meu angustiado cérebro, me cutucava… Rodei o mercado várias vezes, e sempre ficava com aquela frase na cabeça, pairando como um urubu sobre a carniça.
Ao pegar o carro no estacionamento, passou uma empilhadeira com caixas de tomates daquela mesmíssima marca. Sou um contador compulsivo, quase um aritmomaníaco, conto tudo que me passa pela frente (efeito colateral do clássico “O Homem Que Calculava”, de Malba Tahan, cuja leitura devia ser obrigatória), então contei as caixas: 24. Cada caixa com 48 latas, havia naquela garagem 1.152 latas de tomate. A 6 tomates cada, 70.000 tomates. Quantos mercados similares existiriam naquela rua, a principal do bairro? No mínimo uns 20, alguns muito maiores que aquele. Mantendo aquela proporção, só naquela rua haveria 1.500.000 tomates. Um milhão e meio de tomates! Em UMA rua! No bairro, facilmente, haveria mais de 50 mercados. Simplificando, 3.500.000 tomates no bairro. E no estado? Quantos mercados haveria? Se 1.000, um número modesto, teríamos hoje, no Rio de Janeiro, SETENTA MILHÕES DE TOMATES! São Paulo, MUITO maior, teria umas 4 vezes isso: 280 milhões. Mais Minas, Bahia… Numa estimativa por baixo, teríamos hoje, nos mercados brasileiros, 1 bilhão de tomates! Só DAQUELA marca! Se houver mais umas 4 ou 5 marcas, teremos 5 bilhões de tomates à venda. Sem contar o ketchup, imaginem nos EUA, que comem mais disso que nós comemos feijão?
Tonteei. Quanto tempo duraria aquele estoque, uns 3 meses? Ao fim do ano teríamos gasto 20 bilhões de tomates, só no Brasil. Fora batata, milho, soja… SOJA! Simplesmente não é possível, não há tanta lavoura assim no mundo, não há espaço, o mundo não fazia mais sentido!
Fui acordado no meio da noite por um sujeito de óculos escuros. Ele estava sentado numa poltrona, em frente à minha cama, me olhando. Me assustei mais ainda pois não há nenhuma poltrona em frente à minha cama! O susto foi tanto que comecei uma frase com um pronome oblíquo – e átono! Ele me olhava (Acho. As lentes eram muito escuras) e disse:
-Você é um erro. Uma falha.
Já tinha ouvido isso de algumas namoradas, e naquele mesmo quarto, mas de um homem foi a primeira vez. E continuou:
-Vamos precisar apagar tua memória.
Eu pensei que não seria má ideia, tenho memórias realmente muito ruins, e vejam, várias naquele mesmíssimo quarto! Mas resolvi aproveitar a chance e pedir explicações.
-Então é verdade que, quando acontecem coisas inexplicáveis, é falha na Matrix?
-Sim.
-Somos um programa de computador, então?
-Sim.
-Mas acontecem muitas falhas?
-Sim. Temos carência de pessoal, as coisas saem do controle. Queijo Philadelphia no sushi, o senador Heinze, grupo de família no WhatsApp, a Kombi do ovo… E, claro, exageramos nos tomates.
Ele parecia ter uma certa admiração por eu ter percebido a farsa.
-E o Brasil, como está a programação para os próximos anos?
-Depende. Criamos diversas simulações.
-Alguma boa?
-Para nós, diversas. Divertidíssimas. Por causa do tédio, criamos um candidato para nos colocar em risco. Pensamos: eles TÊM que perceber que não é possível isso, só pode ser uma falha na Matrix. E ninguém percebeu! O ministério TODO, e nada! Resolvemos levar ao extremo no Ministério da Saúde e nada… Vocês são incríveis, muito burrinhos.
-Nem todos…
Dessa vez ele me olhou com evidente respeito.
-Ok, você nos surpreendeu. O responsável pelos tomates já foi rebaixado, agora ele cuida dos transportes no Rio.
-Eu acho que mereço uma chance. Posso ser útil do lado de vocês, mas aviso: a kombi do ovo tem que sumir.
-Não, muito perigoso, você precisa ser reprogramado. Tua inteligência é superior, coloca todo o plano em risco. Vamos reduzir teu QI a abaixo de zero.
Nisso, ele colocou uma pílula em minha boca, não tive como reagir. Só que nada aconteceu, a pílula deve ter falhado.
Mas, curioso, acordei com uma estranha compulsão de gritar Mito! Mito! Mito!…
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ricardo Dias
Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.
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