A eleição direta de Tancredo Neves para o governo de Minas, em 1982, foi recebida nos meios políticos como sua transição natural para a Presidência da República. Havia um raio de esperança na sociedade civil desde o início dos anos 1980, pelo compromisso dos generais Geisel e Figueiredo com uma abertura política lenta e gradual. Seria possível recolocar o Brasil nos trilhos, recuperando o caminho rompido abruptamente pelos governos militares desde o Golpe de 1964? Tancredo, já governador, respondia a essa indagação nomeando José Aparecido seu secretário de Cultura, com a missão de articular uma ação nacional em defesa dos nossos valores culturais.
O I Encontro Nacional de Política Cultural, realizado em Ouro Preto, entre os dias 21 e 24 de abril de 1984, congregou artistas, intelectuais, representantes indígenas e quilombolas para a causa da redemocratização, por eleições diretas para a Presidência da República e pela instalação de uma assembleia constituinte. Os anais revelam, como afirma Mauro Santayana, a aspiração do fórum à criação de um Ministério da Cultura, dedicado ao debate de um projeto nacional, e a expectativa do próprio Aparecido de ser o titular da pasta. O que de fato se concretizou no ano seguinte, com a eleição de Tancredo à presidência da República, no Colégio Eleitoral. Um dos primeiros atos de José Sarney, empossado em decorrência da morte de Tancredo, foi a criação do Ministério da Cultura e a nomeação de José Aparecido.
Foram necessários 30 anos para a democracia empreender o desrecalque localista da Nação, e expurgar o complexo de vira-latas consolidado ao longo de duas décadas de Estado totalitário. A Constituição de 1988, recebida com desconfiança pelos setores econômicos por seu viés estatizante, quando o mundo ingressava na era da globalização neoliberal, revelou-se um instrumento poderoso para a afirmação da identidade nacional, com todo um capítulo dedicado aos direitos dos indígenas e das populações tradicionais e outro à preservação do meio ambiente. Não seria possível restaurar a alma brasileira sem expurgar o paradigma genocida do período colonial, que via o indígena como um selvagem a ser domesticado, e sem o regramento rígido da extração de nossas riquezas naturais, em benefício do nosso povo, como profetizara André Malraux, em sua visita ao Brasil em 1959.
A retirada de mais de 30 milhões de brasileiros da linha da pobreza, na década de 2000, foi possível graças ao amadurecimento das instituições, ao longo dos governos eleitos que se sucederam a partir de 1985. O impeachment de Dilma Rousseff, sem qualquer fundamento jurídico, operou um duro golpe na democracia: a pasta da Cultura, maior legado de José Aparecido, foi reduzida a mera secretaria subordinada ao turismo. As autarquias de proteção das populações tradicionais e do meio ambiente passaram a servir aos interesses do agronegócio exportador e do mercado de capitais, como se a Constituição fosse um anátema.
Em seu livro Noites Tropicais, Nelson Motta, personagem onipresente na cultura brasileira, afirma que a morte prematura de Elis Regina em 1982, no mesmo ano em que Tancredo foi eleito para o governo de Minas, foi o avesso do milagre que fez de uma garota baixinha e pobre, da periferia de Porto Alegre, uma das maiores cantoras do mundo. A extinção do Ministério da Cultura em 2019 foi também o avesso do milagre que possibilitou ao Brasil, como resultado de sua reconstrução democrática, assumir uma posição de respeito no concerto das nações.
Elis partiu aos 36 anos, no auge do sucesso. Intérprete insuperável de “O Bêbado e a Equilibrista”, por sua ausência ainda choram marias e clarices, como dizem os versos de Aldir Blanc, escritos para o hino da resistência aos anos de chumbo, composto por João Bosco. A deposição de Dilma, no que se convencionou chamar de “parlamentarismo à brasileira”, caiu como um viaduto na vida nacional e rompeu de forma rude o ciclo democrático inaugurado há 36 anos.
Em um governo de mazombos, a esperança equilibrista dança na corda bamba. Assiste perplexa a um show de horrores com mais de 500 mil mortos, que teima em continuar.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Antonio Carlos Bigonha
É compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).
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