O debate pela desmilitarização das Polícias precisa voltar diante da escalada autoritária no país. Os últimos acontecimentos relativos à presença de policiais militares em manifestações políticas de cunho antidemocrático nas ruas e nas mídias sociais acendeu um grande sinal de alerta em vários setores da sociedade.
Discutiu-se muito se (i) PMs podem ou não se manifestar politicamente e (ii) em que situações essas manifestações seriam permitidas ou enquadradas no Código Penal Militar. A meu ver, esse debate, ainda que fundamental (e, não, PMs da ativa não podem participar de manifestações político-partidárias nas ruas ou nas mídias sociais), está escondendo o problema anterior, que estrutura, define e permite o risco de termos essas polícias agindo politicamente e assustando nossa ainda jovem democracia: a militarização das nossas polícias.
A militarização das forças de segurança traz consigo uma mentalidade em que as forças policiais se veem como legitimadas para o uso desproporcional da força, já que são treinadas para entregar esse resultado, sua “missão”, como gostam de conceituar. Esse ideal, a bem da verdade, tem matriz histórica no país, bastando lembrar que as primeiras forças policiais criadas por aqui tinham como principal função “caçar” escravos fugitivos e, após a abolição, “caçar” ex-escravos que “atrapalhavam” a ordem nas cidades. No século XX, com o poder nas mãos da ditadura militar, essa mentalidade militarista que enxerga nos cidadãos um inimigo a ser combatido ganha especial força e relevância.
O Decreto-lei n.º 667/69, assinado pelo ditador Costa e Silva, estrutura as PMs no país e indica, entre outras coisas, que as polícias militares são obrigadas a se submeterem a códigos disciplinares inspirados no regulamento disciplinar do Exército; que o Exército é o responsável pelo controle e a coordenação das polícias militares, e que o Exército tem a prerrogativa de indicar os comandantes gerais das PMs.
Infelizmente o processo político Constituinte dos anos 1980 que objetivava a confecção de nossa nova Carta Política para superar os anos de chumbo não alterou esse modelo, já anacrônico à época. Nossa atual Constituição estabelece expressamente a divisão do trabalho policial entre uma força responsável por investigações (polícia civil) e outra pelo policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (polícia militar). No artigo 144, a Constituição determina, ainda, que as polícias militares são subordinadas aos governos estaduais, mas continuam sendo, também, força auxiliar e de reserva do Exército.
Sim, se houver uma “guerra” os PMs podem ser convocados para se juntarem às tropas das Forças Armadas – um exemplo óbvio de alinhamento ideológico com instituições treinadas para matar e morrer. E um bom exemplo do perigo que vivemos com a escalada autoritária patrocinada pelo nosso Presidente da República e pelos que ainda apoiam seu modelo de governar.
O fato é que o tema das reformas das polícias foi perdendo terreno nos últimos anos na agenda política, e permanece mais ativo em setores específicos da sociedade, como na academia, por exemplo. Parte da culpa pela submersão da agenda pode ser explicada pela força política que as Polícias Militares possuem no país, e que é cada vez maior. Assim, são raros os agentes políticos que se colocam abertamente nesse debate, a meu ver, hoje, ainda mais necessário.
Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público estaduais, entre outros, não ousam enfrentar o debate para não se indisporem com as tropas locais – um arranjo de conivência que tem se mostrado danoso para nossa democracia. Do outro lado, o Congresso Nacional e o Executivo Federal fecham os olhos para o tema, em geral alegando que polícia é assunto dos estados, e ponto final.
Se já havia razões suficientes – como por exemplo os altíssimos índices de letalidade e brutalidade policial, em geral vitimando a população jovem, preta e parda e pobre, e de impunidade –, para uma profunda reforma de nossos modelos policiais para que se tornem instituições verdadeiramente alinhadas com a Constituição Republicana de 88, o fato de boa parte das instituições civis de hoje terem confessadamente medo de que as PMs possam embarcar em eventual tentativa de golpe de Estado é mais do que motivo para enfrentarmos os desafios políticos que eventualmente surjam e abrirmos um verdadeiro e profundo processo de reforma dos modelos de segurança existentes.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Mariana Chies
É socióloga e advogada. Pesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), é coordenadora-chefe do Departamento de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
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