Eu nasci nos primeiros anos da década de 1970. Sou, portanto, um homem do século passado, que se lembra muito bem das exibições militares organizadas pelas superpotências, antes do ocaso da Guerra Fria.
Quem quiser ainda poderá ver uma dessas paradas na China, na Coréia do Norte, ou – muito mais modestamente – no Irã.
No ocidente, a indústria do cinema, com os seus filmes de ação, encarregou-se de “glamurizar” a violência, para o bem do recrutamento pelas forças armadas.
Difunde a musculatura e a proficiência dos grandiosos aparatos militares. Reverencia as tentaculares agências de informação. Assim se advertem todos, não apenas os inimigos atuais e potenciais.
Mas essas técnicas de propaganda foram alçadas a um novo patamar: a espetacularização dos vazamentos de informação secreta.
Ao contrário do que se possa crer à primeira vista, as peripécias de Assange e de Snowden, também dramatizadas na grande tela, não levam a concluir pela incompetência da CIA ou da NSA, mas, sobretudo, por sua assombrosa ubiquidade e pela infinita e irreversível multiplicidade de seus meios de controle, que se estabeleceram para pôr fim a toda e qualquer privacidade.
Não se vê, a despeito das revelações bombásticas, supostamente extraídas à fórceps dos porões dos serviços de inteligência, senão o comportamento bovino da comunidade espionada.
As pessoas, nos cinemas, ao final das apresentações, não descartam seus celulares, e, em casa, não deixam de acessar as redes sociais.
As novas paradas militares, diariamente organizadas pelo Wikileaks ou mesmo pela imprensa off Broadway, não têm inspirado, em definitivo, repúdio capaz de opor resistência à formação de uma autoridade de espectro planetário, totalitária e que viola impunemente direitos fundamentais.
A repetição de vazamentos escandalosos, que dão conta da devassa sobre a privacidade de todos e de cada um de nós, reforça o esvaimento de poderes individuais, que, vale lembrar, na origem, quando da celebração do Contrato Social, seriam apenas parcialmente transferidos ao Estado, para que o Leviatã garantisse a propriedade, a liberdade e a vida dos cidadãos.
Essas novas paradas militares, ruidosas, marcam uma silenciosa refundação do Estado, a abolição espontânea da cidadania e uma restrição radical da condição humana, que se põe apenas e tão somente ao trabalho e ao consumo. Marcam o aparecimento do Macroestado e do Nano-humano.
Os hackers e os desertores arrependidos não compõem sensuais forças de resistência. São nada além de agentes do establishment, difusores, voluntários ou involuntários, das regras e da infinidade dos poderes estabelecidos.
Servem, portanto, para nos convencer de nossa derrota inevitável. São indutores do nosso relaxamento e da nossa rendição.
O Estado, porém, somente o Estado será capaz de nos redimir. É, de fato, um instrumento brutal e opressor à serviço daqueles que o possuem. Mas ainda se encontra à mão do povo: precisamente a mais temível força de oposição dessa nova ordem emergente.
A democracia sob controle radicalmente minoritário (ou seja, um arremedo de democracia) é a fachada dos regimes totalitário-plutocráticos, nos quais os governos e as técnicas estatais de opressão são apoderados pelas pessoas mais abastadas do planeta.
Nessa falsa democracia, os governos são escolhidos pelo povo, sob engano, para que o Estado sirva pouquíssimos em detrimento de muitos.
Mas ainda que frágil e apequenado, o componente democrático dessa “Democracia Vigiada” é também o seu flanco mais vulnerável.
Caso o povo não se convença a abdicar espontaneamente de seu poder, a renunciar aos mecanismos efetivos de controle (de captura) do Estado e dos governos, a abraçar a alienação e a anestesia do pensamento e dos sentidos, então, o poder será inexoravelmente perdido para o povo.
Nesse dia, na remota hipótese de sua ocorrência, o Estado não mais oporá nações, não se apropriará da energia vital de bilhões para a entregar a centenas e não matará em nome da paz. Nesse dia, não haverá paradas militares.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Walfrido Warde
É advogado, escritor e presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE).
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