A democracia é louvada como momento máximo da política, alcançado apenas na Idade Contemporânea; costuma-se fazer uma imediata e exclusiva associação entre democracia e capitalismo. Contudo, tanto não há essa especificidade histórica quanto, ainda, o que se chama por democracia no capitalismo – uma estrutura política liberal – é uma forma de deliberação insculpida nos limites da garantia da propriedade privada e da exploração do trabalho assalariado. Por democracia, no capitalismo, deve-se pensar um modo de reprodução da interação entre sujeitos concorrentes numa sociedade orientada à acumulação e estruturada na forma mercantil.
O pioneirismo de engenhos de democracia política se deu na antiguidade. Em sociedades sob modo de produção escravista, organizadas pelo mando direto senhorial, ocorreram, excepcionalmente, formas de interação entre senhores e homens livres plantadas sobre variados graus de igualdade política. Em algumas pólis gregas e em alguns tempos da república romana, grupos minoritários senhoriais ou livres, sustentados pela força e pela subjugação de escravizados, deliberavam sobre questões comuns da economia, da política e da sociedade. No fundamental dos casos gregos e romanos, no entanto, há a reunião do poder político e do poder econômico nas mãos dos senhores. A democracia é a forma de resolução de questões não vinculadas à produção: preserva-se o arbítrio nos mandos e abre-se uma esfera de igualdade política entre as relações entre os senhores.
Se o feudalismo não logrou forjar circuitos maiúsculos de democracia, também o mesmo se deu nos casos de absolutismo na Idade Moderna. Serão as revoluções liberais burguesas que inscreverão uma nova fase de organização política democrática: o nascente modo de produção capitalista necessita romper com as coerções senhoriais feudais e monárquicas, lastreadas nos privilégios, e estabelecer, entre capitalistas e entre capitalistas e trabalhadores, um regime de vinculação fundado no contrato. Para a produção, é a conversão do trabalho ao regime do salariado; para a circulação, é a conversão de todas as coisas em mercadorias. A forma de subjetividade jurídica passará a organizar, então, os sujeitos.
A democracia capitalista tem seu lastro na materialidade das relações sociais determinadas pela forma mercadoria. Distinguindo-se dos modos de produção de domínio senhorial e apenas direto, o capitalismo erige como sua base de sociabilidade a troca entre agentes econômicos considerados iguais para o momento do contrato e a constituição de um ente político terceiro aos agentes da produção. Assim sendo, o direito, como forma de subjetividade jurídica, e o Estado, como forma política derivada da forma mercadoria, mas distinta do interesse de cada burguês em específico, serão os eixos do agir político e social capitalista. Daí decorre a consideração de que a democracia seria o corolário necessário de uma sociedade toda regida pelo contrato e garantida estatalmente na defesa da propriedade privada: se os agentes são livres e o senhorio direto é abominado, a decisão política seria compartilhada igualmente entre os sujeitos de direito, que para o campo político serão considerados cidadãos.
Ocorre que o capitalismo não pode escorar-se, materialmente, em uma estruturação igual entre os cidadãos. O entesouramento do capital é distinto entre capitalistas e trabalhadores; estes são explorados por aqueles. Mesmo quando declarada a igualdade política – todas e todos cidadãos, todas e todos com direito a votarem e a ser votados –, subjaz uma desigualdade material, de classe. A burguesia decide o processo político mediante as formas sociais que operam para seu gozo. A classe trabalhadora, para fins de ganhos na política no capitalismo, só tem por papel a oposição, o antagonismo, a contradição: dentro deste modo de produção, seu melhor resultado é sempre o ganho residual. A democracia, assim, se faz por cidadãos iguais mas se funda na desigualdade, não para corrigi-la, mas exatamente para mantê-la. Na democracia, vota-se; o controle ideológico dos sujeitos políticos e de seus votos, no entanto, é necessariamente vinculado à manutenção das classes exploradoras, num processo atravessado por dominações e opressões variadas.
Historicamente, ainda, sucumbem experiências de democracia burguesa que se ponham a estabelecer câmbios sociais para além da acumulação capitalista ou mesmo de melhoria distributiva dentro desta. No século XX, de Jango a Allende, e no século XXI, em casos de governos de esquerda ou nacionalistas pelo mundo, o respeito ao voto é erodido por golpes e bloqueios do capital. O alcance da democracia é baixo: a administração de conflitos sociais e da distribuição econômica dentro dos limites da valorização do valor da burguesia. As decisões maiúsculas são estruturalmente bloqueadas na democracia capitalista, se não formalmente, ao menos na prática.
Mas, para além de sua esfera de possibilidades, que é a de dar vazão aos conflitos internos das sociedades concorrenciais mantendo suas formas basilares de exploração e dominação, há também os interditos formais da democracia no capitalismo. A propriedade privada se sustenta e sua alteração não se põe na berlinda. Os contratos devem ser cumpridos e, em caso negativo, os ressarcimentos devidos. Os direitos políticos e eleitorais são sistematicamente negados ou enviesados: no século XIX, mulheres e escravizados foram mantidos fora da democracia, e esta já se presumia plena. Até o século XX, a miséria ou o analfabetismo foram critérios para o aleijamento na participação política. A repressão política a classes, movimentos e grupos variados se mantém até a atualidade: a proibição de participação na democracia aos comunistas, às esquerdas, aos judeus e/ou a distintos grupos sociais. Nem a democracia sustenta decisões contra o capital nem tampouco estende seus limites de direitos políticos a todos.
No fundamental, a democracia é o espelho, no plano da decisão política, das interações exploratórias e dominantes havidas sob as formas sociais capitalistas. É uma das margens da reprodução política do capital – ditaduras e fascismo são-lhe a outra margem. Por entre ambas as margens, correm as águas da acumulação e o sangue da população mundial, com ou sem direitos democráticos. Formas materialmente mais amplas de decisão política só podem se dar com a superação das formas sociais do capital.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Alysson Leandro Mascaro
Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).
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