A crise sem precedentes da Americanas – IREE

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A crise sem precedentes da Americanas

Yasser Hatia

Yasser Hatia
Administrador especialista em varejo e serviços



A Americanas SA (AMER3) é uma empresa brasileira com atuação em cinco frentes de negócios: varejo, e-commerce, logística, fintech e publicidade. A organização possui mais de 90 anos de história e havia alcançado alguns milestones em 2021, como o desenvolvimento e crescimento da plataforma Vem, uma joint-venture com a antiga BR distribuidora, hoje Vibra Energia (VBBR3), além da aquisição do Hortifruti Natural da Terra por USD 402 milhões. Neste mesmo ano, a companhia fez a combinação dos ativos e das bases acionárias de Lojas Americanas e B2W (Americanas.com; Submarino e Shoptime), criando uma só companhia para seus investidores, e conseguiu performar um crescimento de 33% em relação a 2020, atingindo o maior lucro da história, de R$ 733 milhões.

Em 2021, a empresa possuía 51 milhões de clientes ativos, mais de 44 mil associados e de 3500 lojas em todo o país e registrou vendas totais de R$ 55,3 bilhões..Em 2023, a companhia cresceu sua base para 3600 estabelecimentos e afirma manter mais de 100 mil empregos diretos e indiretos. Mas como uma companhia com história e aparentemente solidez, marca forte, reconhecimento nacional e com sócios que são os empresários mais ricos do país chocou o mercado financeiro? Vamos aos fatos.

Em agosto de 2022, a Americanas anunciou Sergio Rial, ex-presidente-executivo do Santander Brasil, para o o cargo de CEO da companhia a partir de janeiro de 2023, substituindo Miguel Gutierrez, que estava há cerca de duas décadas na posição. A troca tinha como objetivo promover a empresa, melhorar os moldes de governança corporativa, atrair investidores e promover o crescimento do negócio.

Rial viria ocupar o cargo por apenas nove dias. Após realizar uma investigação interna, anunciou ao mercado em 11 de janeiro de 2023 ter encontrado “inconsistências contábeis” da ordem de R$ 20 bilhões no balanço financeiro da companhia de 2022 e de anos anteriores. A notícia teve graves consequências no mercado acionário e o papel da companhia despencou 77% no dia 12 de janeiro, somando uma perda de mais de 70% na semana. Desde a revelação do rombo financeiro, as ações da Americanas já acumulam perda de mais de 83,83% até o fechamento do mercado na segunda-feira, dia 16 de janeiro de 2023.

A origem do problema

A origem do problema é uma operação comum entre varejistas, chamada de “risco sacado”. Nesta modalidade de crédito, a companhia contrata um financiamento com um banco e utiliza o recurso levantado para comprar de seus fornecedores. O capital contratado é utilizado para quitar os fornecedores e posteriormente a companhia quita a dívida com a instituição financeira, sendo cobrado os juros pelo período do empréstimo. Tais operações não foram devidamente reportadas no balanço da empresa. Dessa forma, além de aumentar o grau de endividamento da Americanas, os erros dão margem aos credores para anteciparem suas cobranças, de acordo com as cláusulas contratuais, acarretando o vencimento antecipado e imediato de dívidas num montante superior a R$ 40 bilhões, apresentando alto risco de insolvência. Segundo a Americanas, “as instituições financeiras podem se apropriar de valores existentes em contas-correntes e de investimentos, de forma administrativa, em razão das cláusulas contratuais para compensação de seus créditos, inviabilizando o exercício da atividade empresarial”.

A companhia conseguiu uma medida de tutela de urgência cautelar que impede a execução antecipada das dívidas por 30 dias e suspende toda e qualquer possibilidade de bloqueio, sequestro ou penhora de bens, adiando a obrigação da companhia de pagar suas dívidas até que um provável pedido de recuperação judicial seja feito. Em suma, conseguiu ganhar tempo. A decisão é do juiz titular da 4ª Vara Empresarial do Rio, Paulo Assed Estefan: “Antes a instantaneidade dos efeitos deletérios desta situação fática, na medida em que o fato relevante foi apresentado ao mercado em 11.01.2023 e as constrições já estão sendo efetivadas na data de hoje, 13.01.2023, é plenamente justificável o deferimento da medida, com vistas a evitar o exaurimento de todos os ativos da Companhia, por credores altamente qualificados, em detrimento dos demais credores e, principalmente, da própria manutenção da atividade econômica”.

Vale destacar que alguns credores já estavam notificando a companhia para declarar o vencimento antecipado das obrigações. Segundo o jornal Valor Econômico, a varejista deve aos bancos privados cerca de R$ 18,5 bilhões. Entre os principais credores, figuram Bradesco (BBDC4), com R$ 4,7 bilhões, Santander (SANB11), R$ 3,7 bilhões, Itaú (ITUB4), R$ 3,4 bilhões e BTG Pactual (BPAC11), com R$ 1,2 bilhões. As instituições públicas também figuram na lista dos principais credores, com 19 contratos firmados com a varejista no valor de R$ 6,4 bilhões, o que representa um terço do total de operações de crédito fechadas pela companhia.

Duas ações chamaram a atenção dos investidores. Primeiro, o banco BTG acusou a Americanas de má-fé por tentar resgatar cerca de R$ 800 milhões em investimentos no banco três horas antes de anunciar ao mercado o rombo contábil. O segundo caso foi a venda de R$ 241 milhões em ações entre julho e outubro de 2022 pela diretoria da varejista. No mesmo período houve uma compra de ações pelos diretores no valor de R$ 18 milhões, o que resulta num saldo de venda de R$ 223 milhões, de acordo com os documentos fornecidos pela empresa a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Ao longo da década em que a Americanas conseguiu “esconder” suas dívidas de R$ 20 bilhões, os executivos da varejista receberam ao menos R$ 700 milhões em remuneração (incluindo salários, bônus de desempenho e pagamento em ações ou opções, mostra o levantamento feito a partir dos dados disponíveis pela companhia. Parte relevante dos recebimentos estavam atrelados a metas de resultado, curiosamente uma das linhas do balanço da companhia marcadas pelas “inconsistências contábeis”.

Consequências

Diante de um cenário turbulento, a agência de classificação de risco Moody’s rebaixou na segunda-feira, 16, a nota de crédito da Americanas de ‘Ba2’ para ‘Caa3’ e colocou o rating em revisão para rebaixamento, acompanhando o movimento de seus pares Fitch e Standard&Poor’s na sexta-feira, 13. De acordo com a escala da Moody’s, obrigações classificadas como ‘Caa’ são consideradas especulativas com baixa posição e estão sujeitas a risco de crédito muito elevado.

Na tarde de quarta-feira, 18 de janeiro, o BTG Pactual, conseguiu decisão na Justiça do Rio de Janeiro para bloquear cerca de R$ 1,2 bilhão em recursos da Americanas. O banco havia entrado com mandado de segurança na terça-feira dia 17, para evitar que a tutela de emergência obtida pela varejista na última sexta, 13, o obrigasse a reverter um vencimento antecipado. A decisão foi do desembargador Flávio Marcelo de Azevedo Horta Fernandes, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) e trata-se da primeira decisão judicial favorável a um credor da varejista. Outros bancos como Safra, Bradesco e Bank of America já acompanharam a ação do BTG para assegurar seus créditos.

Analistas destacam que os acionistas de referência da empresa, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, da gestora 3G, possuem 29,93% do capital e investem na companhia há quase 40 anos. O fato dos empresários serem os mais ricos do país e gozarem de enorme reputação no mercado local e internacional tornou o evento ainda mais chocante. Eles estariam dispostos a injetar cerca de R$ 6 ou 7 bilhões em novo capital, abaixo dos R$ 12 a R$ 21 bilhões solicitados pelos bancos credores e contra um valor de mercado de R$ 1,05 bilhão no último fechamento.

A possibilidade de uma recuperação judicial embutiu uma dúvida entre os investidores de fundos imobiliários (FIIs) com contrato de locação com a empresa. Especialista acreditam que os FIIs não teriam perdas no longo prazo, mas talvez haja problemas no curtíssimo prazo. Valores eventualmente não pagos antes da recuperação judicial poderiam entrar na lista de dívidas da empresa. Este tipo de despesa possui preferência frente a todos os demais credores e deve ser paga durante o período de recuperação judicial. Porém, o cenário não afasta totalmente o risco de impactos no fluxo de receitas dos FIIs. Durante o período de recuperação judicial, pode ser determinada a redução temporária do valor da locação – e o saldo remanescente seria pago posteriormente. Por fim, vale destacar que em caso de recuperação judicial, o locador não pode pedir a rescisão do contrato com o inquilino.

Com relação aos acionistas minoritários, o Instituto Brasileiro de Cidadania (IBRACI) entrou com uma ação solicitando que os investidores devem ser indenizados individualmente por danos morais e materiais. Se esse pedido for negado pela Justiça, o instituto sugere que o juízo aplique punição por dano moral coletivo. Segundo o IBRACI, “as práticas danosas representam atos ilícitos realizados por seus agentes e pela empresa e induziram os investidores a superavaliar os papéis ocasionando prejuízo a eles”.

A Americanas contratou a Rothschild & Co para atuar como interlocutora da companhia na renegociação da dívida, no Brasil e no exterior. Em fato relevante enviado a CVM, a companhia destaca que “a Americanas reforça seu compromisso na busca de uma solução de curto prazo com seus credores”.

Após o escândalo da Americanas amargar o otimismo dos investidores, o evento contaminou as demais varejistas que também passaram a acumular perdas. O grupo de varejistas, que somava R$ 86,8 bilhões de reais em valor de mercado em 11 de janeiro de 2023, despencou para R$ 79,34 bilhões em 13 de janeiro, segundo os dados da TradeMap realizado com 19 varejistas, entre elas Via Varejo (VIIA3), Magazine Luiza (MGLU3), Lojas Renner (LREN3), Grupo Soma (SOMA3) e outros.

O pedido de recuperação judicial da Americanas

Na quinta-feira, 19, a Americanas entrou com o pedido de recuperação judicial (RJ). A empresa anunciou ter uma dívida de R$ 43 bilhões e afirmou que o caixa da companhia está sendo escoado pelos bancos credores. Trata-se da quarta maior recuperação judicial do país com 16 mil credores. O caso será tratado pela 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, que irá decidir se aceita ou não.

Os R$ 7,8 bilhões em caixa que a companhia tinha já não corresponde mais com a realidade. A empresa alega em sua petição ter apenas R$ 250 milhões em caixa, quantia insuficiente para manter a operação. Credores já começaram a pressionar a companhia para a venda da participação da companhia em controladas, como o hortifruti Natural da Terra, a Uni.co (dona da Imaginarium e Puket) e a Vem – a joint venture com a Vibra para lojas de conveniência, opção que poderia render R$ 3,3 bilhões para a varejista. Neste cenário, a agência de rating S&P rebaixou a nota de risco de crédito para “D”, de default (calote).

A Americanas SA foi um dos principais investimentos do trio da gestora 3G desde 1982. Em fato relevante após a divulgação do pedido de recuperação judicial, a varejista afirma que há compromisso de seus acionistas de referência, em manter a liquidez da companhia “em patamares que permitam o bom funcionamento da operação de todas as lojas, do seu canal digital, Americanas.com, da Ame e suas coligadas”.

Pela tradição da empresa, pela reputação de seus principais sócios e pela repercussão nos ativos, o caso está sendo acompanhado com atenção por todo o mercado. Os próximos dias serão cruciais para a companhia apresentar um plano de reestruturação para seus acionistas e credores. Além da responsabilidade social de manter mais de 100 mil empregos diretos e indiretos uma falta de solução ou uma solução ruim deixaria um rescaldo muito danoso vindo de um grupo que sempre surpreendeu o mercado com novidade positivas.

 



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Yasser Hatia

Empresário, graduado em administração de empresas pela FGV e aluno no curso de mestrado profissional em gestão com foco em varejo pela FGV. Iniciou sua carreira no mercado financeiro atuando na área de fusões e aquisições. Atualmente exerce atividade profissional no segmento de varejo e serviço.

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