A Crise da Covid-19 no Transporte Coletivo Urbano – IREE

Análises e Editorial

A Crise da Covid-19 no Transporte Coletivo Urbano

Artigo de autoria dos advogados Rodrigo Mudrovitsch e Gustavo Branco

Efeitos da crise da Covid-19 no setor de transporte coletivo urbano

Em recente debate promovido pelo IREE – Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, liderado pelo Dr. Walfrido Warde e mediado pelo Dr. Renato Pollilo e Dr. Rafael Villar, do qual os autores participaram, foi abordado o relevante tema dos efeitos da situação de emergência vivida no setor de transporte coletivo, contando com as riquíssimas e experientes contribuições do Dr. Otávio Cunha, Presidente Executivo da NTU e do Dr. Jorge Dias, Presidente do Conselho de Administração da Fetranspor.

Que o momento que atravessamos é crítico e sem precedentes para quase todas as gerações, não há necessidade de dizer. Há uma pandemia em curso provocando milhares de mortes e governantes adotando medidas emergenciais muitas vezes conflitantes entre si. Ainda não se tem proporção do quão afetada será a nossa economia e quantos desempregados estarão nas ruas quando a tempestade passar.

Para analisar os efeitos da crise com relação ao setor do transporte coletivo urbano, é importante que se tenha plena compreensão do quadro em que o setor já se encontrava antes do estado de emergência que se iniciou. De fato, essa visão anterior é de extrema relevância para o debate sobre soluções para essa crise a compreensão ampla da situação em que se encontravam as concessões de transporte urbano por ônibus no Brasil. Se não no Brasil, em suas principais metrópoles.

A Constituição Federal de 1988 delegou aos municípios a competência para organizar e prestar o serviço de transporte coletivo, expressamente consignando, em seu artigo 30, inciso V, que o transporte coletivo possui caráter essencial. A Constituição também determinou, no mesmo artigo, que a prestação desse serviço, caso não seja feita diretamente, deve ser realizada por meio de concessão ou permissão.

Definido como serviço público de caráter essencial, o transporte coletivo, a partir de 1988, passou a depender da realização de licitação para a sua concessão ou permissão, o que deu origem a situações bastante díspares entre os municípios brasileiros na forma como estruturam o transporte coletivo e nas condições estabelecidas para as suas concessões.

O regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos está estabelecido na Lei Federal 8.987 de 1995, que disciplinou o previsto no artigo 175 da Constituição Federal.

Se tomarmos como exemplo o caso do município de São Paulo, que conseguiu há alguns meses realizar sua licitação, tentada desde o ano de 2013, há contrapartida municipal por meio de subsídios públicos às concessionárias. Com base em dados do ano de 2019, os custos anuais de operação do sistema de transporte coletivo do município de São Paulo, atingem a casa de 8 bilhões de reais, e as concessionárias contam com um subsídio municipal de aproximadamente 3 bilhões de reais.

Já, se voltarmos o olhar para o município do Rio de Janeiro, a licitação das concessões (realizadas por regiões) ocorreu no ano de 2010. O prazo estabelecido para as concessões foi de 20 anos, com possibilidade de prorrogação por mais 20 anos se cumpridos determinados requisitos.

Diferentemente do caso de São Paulo, a concessão do município carioca estabelece que a remuneração do concessionário será exclusivamente por meio da tarifa paga diretamente pelos usuários pagantes do serviço. O mesmo contrato estabelece que a tarifa será reajustada anualmente segundo critério técnico estabelecido.

Como os contratos de concessão de transporte urbano, dada a natureza do serviço, estabelecem prazos amplos e estão sujeitos a inúmeras variações de condições fáticas para a prestação do serviço, dependendo diretamente de condições oferecidas pelo Poder Concedente, é natural que haja a previsão contratual da revisão das condições tarifárias estabelecidas de forma periódica.

No Rio de Janeiro, há a previsão expressa de processos de revisão tarifária a cada 4 anos. Ocorre que esses processos acabaram por jamais serem concluídos, uma vez que o valor real da tarifa a ser praticada não estaria de acordo com o princípio da modicidade tarifária que rege o contrato.

Assim, há hoje em diversos municípios brasileiros uma enorme defasagem entre o valor real da tarifa necessária a cobrir os custos de operação e atender à TIR estabelecida e o valor da tarifa efetivamente praticada.

Esse nítido desequilíbrio econômico é responsável por corroer o setor de transporte, levando muitas empresas a fecharem suas portas e aumentar a idade média da frota que opera.

Dentro desse cenário em que já se encontrava o transporte coletivo urbano, a crise do Covid-19 surgiu com força para devastar o setor de maneira muito rápida e o está impactando profundamente pelas medidas irrefletidamente adotadas por alguns formuladores de políticas públicas.

A drástica redução de passageiros, ocasionada pela “quarentena” a que a população está se submetendo, provoca um impacto imediato de proporções catastróficas nas receitas das empresas de transporte, dependente primordialmente dos usuários pagantes. Isso seca o caixa – que já era preocupante antes do início da pandemia – a níveis alarmantes. Soma-se a isso, algumas medidas emergenciais que tendem a agravar ainda mais a situação, provocando um verdadeiro risco de colapso estrutural do sistema.

Esse cenário, no entanto, pode se agravar, se as empresas não suportarem as medidas que estão sendo adotadas e tiverem que paralisar suas atividades, deixando milhares de pessoas desempregadas e dificultando de forma inimaginável o deslocamento urbano.

Uma crise no transporte terá um efeito dominó, impedindo àqueles que necessitam se locomover (funcionários da saúde e segurança entre eles) de chegarem a seu destino, podendo paralisar hospitais e outros serviços também considerados essenciais.

Mecanismos, constitucionais, legais e contratuais para garantia da prestação do serviço essencial do transporte coletivo urbano

 O transporte coletivo urbano é direito fundamental e serviço essencial. Como serviço essencial, não pode ser interrompido. Sua interrupção, como visto, provocaria danos gravíssimos em diversos setores que dependem do transporte para o seu correto funcionamento, como, por exemplo, o setor da saúde.

Dentro desse contexto, o Governo Federal, no recente Decreto n. 10.282, de 20 março de 2020, assegurou que as medidas previstas para o combate à Covid-19, previstas na Lei n. 13.979, “deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais”, conforme previsto em seu artigo 3º.

Art. 3º As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1º. § 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como:

V – transporte intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo;

O mesmo artigo, reafirmando o texto constitucional, estabelece, no seu inciso V, o transporte como atividade essencial que deve ser preservada e protegida nesse momento de crise. É, portanto, dever do Governo Federal adotar medidas que preservem a viabilidade do transporte, tanto rodoviário interestadual, como do urbano e intermunicipal.

Também é dever do município concedente, seja por força constitucional, seja por obrigação contratual, garantir condições para que as concessionárias prestem o devido serviço.

Isso passa, primeiro, por não determinar acriticamente a sua interrupção. É claro que a situação atual nos obriga a tomar cuidados adicionais, mas esses cuidados devem antes se orientar para manutenção da prestação dos serviços essenciais.

Cidades como Istambul e Dublin tem adotado medidas relevantes para preservação do sistema de transporte urbano, como a constante desinfecção de carros, estações de BRT e proteção efetiva de motoristas. Essas medidas importantes dependem diretamente de atos e, fundamentalmente, de recursos do Poder Concedente, que deve oferecer condições mínimas para operabilidade, principalmente em momentos de crises como a que agora enfrentamos.

A Administração Pública deve evitar que ocorra o Fato do Príncipe e envidar esforços financeiros e operacionais para garantir a continuidade do serviço essencial que é o transporte coletivo urbano, ainda mais em um momento de crise como o atual. Isso passa desde a racionalização da linhas e frota em operação até desonerações tributárias e ajudas financeiras para cobertura de custos.

Faz-se necessário, portanto, que a determinação Federal seja obedecida e oriente as medidas a serem adotadas também pelos Governos Estaduais e Municipais, que devem preservar a prestação dos serviços de transporte coletivo urbano e intermunicipal, também como forma de superar o momento de pandemia por que passamos. O primeiro passo consiste em trabalhar conjuntamente, setor público e privado, para identificação das necessidades na criação de planos de contingência para readequação da frota, levantamento dos custos reais e garantia de atendimento nos principais eixos de acesso aos serviços básicos da cidade.

Situações extraordinárias como a atual tem por consequência graves alterações no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos que devem ser prontamente compensadas para não ter como fim a paralização do transporte coletivo urbano.

Os contratos de concessão, em geral, já possuem previsões para situações emergenciais, que provoquem desequilíbrio econômico-financeiro por razões extraordinárias, imprevisíveis, estranhas à vontade das partes e inevitáveis.

Não obstante, essa medida se trata de expressa previsão legal, consoante consta no artigo 9º, parágrafo 4º, da Lei Federal 8987, que disciplina as concessões de serviços públicos:

§ 4o Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.

Essas condições devem ser discutidas entre o concessionário e o Poder Concedente para que se chegue rapidamente a medidas para garantir o reequilíbrio econômico financeiro dos contratos.

Já com relação ao Governo Federal, tendo em vista a situação econômico financeira por que também passam os municípios, há o dever em um momento urgente como esse de garantir a prestação dos serviços essenciais.

Propostas como a levada pela NTU ao Governo Federal, no sentido de garantir a receita das empresas por meio da aquisição de créditos eletrônicos são essenciais e urgentes para preservar a prestação dos serviços.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o Presidente Donald Trump, assinou um pacote de ajuda financeira para mitigar os efeitos da pandemia de coronavírus no país.

No dia 27 de março de 2020, Trump assinou um ato denominado CARES – Coronavirus Aid, Relief and Economic Security. Este ato contém a previsão da destinação US$ 25 bilhões (cerca de R$ 127 bilhões) para agências de transportes ao longo do ano de 2020. O objetivo de tal medida é garantir que o transporte coletivo, reconhecido como serviço essencial, não corra o risco de parar o se deteriorar ao longo da crise provocada pela Covid-19.

Como bem exposto pelo CEO da APTA (American Public Transportation Association), Paul P. Skoutelas, a respeito da medida assinada pelo Presidente Norte-Americano:

“O transporte público é uma tábua de salvação crítica para milhões de americanos, e essa legislação fornecerá o apoio necessário aos sistemas de transporte que trabalham incansavelmente para fornecer serviços essenciais de transporte público para profissionais de saúde, socorristas e trabalhadores de supermercados e farmácias, além de assistência médica, transporte para diálise renal, tratamentos contra o câncer e outros cuidados críticos”[1]

De fato, medidas como a desoneração tarifária e normas trabalhistas voltadas à preservação do emprego e da renda, como a MP 936 publicada ontem, que traz condições para a suspensão temporária de contrato de trabalho e redução proporcional de jornada e salário,  também são fundamentais em um momento como o presente para a manutenção de empregos e da prestação do serviço essencial que é o transporte coletivo.

O transporte coletivo é a espinha dorsal das cidades e constitui serviço essencial para superação do momento atual. Cabe aos responsáveis pela formulação das políticas emergenciais atuarem em conjunto com os operadores do sistema de transporte para juntos chegarem às medidas que permitam a sobrevivência do transporte coletivo e sua prestação adequada, fazendo valer a determinação prevista no Decreto n. 10.282, de 20 março de 2020.

[1] Disponível em: https://diariodotransporte.com.br/2020/04/01/donald-trump-assina-lei-destinando-quase-130-bilhoes-de-reais-a-operadoras-de-transporte-nos-eua/ [acessado em 03.04.2020]

Rodrigo Mudrovitsch e Gustavo Branco são sócios do Mudrovitsch Advogados.



Por Equipe IREE

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