A COVID-19 e os Sistemas de Privação de Liberdade – IREE

Colunistas

A COVID-19 e os Sistemas de Privação de Liberdade

Mariana Chies

Mariana Chies
Socióloga e Advogada



Passados mais de 120 dias desde a confirmação do primeiro infectado por Covid-19 no Brasil, que ocorreu no dia 26 de fevereiro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou uma página em seu site em que mostra os dados da Covid-19 dentro do sistema prisional e socioeducativo. Muito embora seja uma iniciativa importante, o Brasil não foi o primeiro país a fazer isso e deixou a desejar ao não mapear questões importantes, tais como o gênero e raça dos contaminados e das contaminadas.

Já utilizamos esse espaço para falar da precariedade da produção de dados no Brasil. E não é de se esperar que isso vá melhorar em um curto espaço de tempo, principalmente considerando a negação do governo federal em relação às evidências científicas. Tais evidências já nos dizem, há tempos, do perigo de contaminação pela Covid-19, assim como apontam, há algumas décadas, a precariedade dos sistemas de privação de liberdade e informam, também, que não há necessidade de se prender tanta gente.

Voltando à iniciativa do CNJ, vale informar que esses boletins têm por objetivo guiar as ações do Poder Judiciário, notadamente no âmbito da Recomendação nº 62, publicada em março deste ano. Ressalta-se que em razão da publicação desse documento e do trabalho incansável de advogados e advogadas e de defensores públicos e defensoras públicas, 4,8% da população carcerária e socioeducativa foi liberada, pessoas que tiveram seus direitos garantidos para cumprir prisões domiciliares ou alguma medida cautelar diversa da prisão.

Parece pouco, mas são 32,5 mil, dos quase 750 mil presos e presas que tiveram a chance de ter suas vidas poupadas da crise sanitária que se instalou no país, e de forma mais sorrateira nos sistemas de privação de liberdade, e que parece não ter data para acabar.

A pandemia atinge as unidades de privação de liberdade do país em ritmo preocupante, como já havíamos apontado.  A partir dos dois boletins publicados pelo CNJ isso fica ainda mais claro.

No dia 15 de junho, data da atualização do primeiro boletim, existiam 5.754 casos confirmados da Covid-19 no sistema prisional e 95 óbitos registrados, entre presos (as) e servidores (as). Em relação aos presos, o número total de infectados era de 2.605 pessoas, ao passo que para os servidores (as) esse número era ainda mais alto, de 3.149 pessoas doentes em razão do Coronavírus. Em relação aos óbitos, vimos que 54 pessoas presas morreram em decorrência da Covid-19 e 41 servidores (as) também.

Podemos inferir, talvez, que a situação dos servidores (as) seja ainda pior, já que esse número se dá sobre um contingente populacional menor que a população carcerária em termos gerais. Ou seja, proporcionalmente, os números são ainda piores para servidores (as).

O primeiro boletim revelou que a região Centro-Oeste concentrava a maioria dos(as) presos(as) contaminados(as), perfazendo 37,3% do total de casos no Brasil, enquanto os óbitos de pessoas presas em decorrência da Covid-19 se concentraram na região sudeste, com 55,6% do total de registros.

Em relação à contaminação dos (as) servidores (as), a região Nordeste lidera com a concentração de contaminados (as), com 41,2% do total. Já em relação aos óbitos, novamente a região Sudeste concentrou o maior número. O Distrito Federal foi, naquele momento, a unidade federativa com o maior número de casos confirmados de pessoas presas, com 885 casos, ao passo que o estado do Pará teve o maior número de casos de servidores (as), um número absoluto que chegou a 554 pessoas contaminadas.

Aqui, vale pontuar que a região Sudeste é a que concentra o maior número de presos e presas (só São Paulo tem cerca de um terço das pessoas presas do Brasil) e, portanto, seria lógico pensar que teríamos também mais servidores (as) nesses locais. Mas a pergunta que fica é o motivo pelo qual mais presos (as) foram infectados na região Centro-Oeste e mais servidores (as) foram contaminados (as) em um estado da região Norte.

Em relação ao sistema socioeducativo, os números nos diziam que tínhamos, até 15 de junho, um total de 239 casos confirmados entre adolescentes internados (as), com nenhum óbito. Já em relação aos servidores e às servidoras do sistema socioeducativo o número foi de 678 casos, com 11 óbitos no total. No caso do sistema socioeducativo, não temos dados a respeito das unidades federativas com o maior número de contágio e de óbitos, tendo sido apenas disponibilizado o número total de adolescentes e servidores (as) infectados e que chegaram à óbito.

Uma semana depois, no dia 22 de junho, com a publicação do segundo boletim e com os números acumulados, já eram 4.256 casos de pessoas presas contaminadas, com 58 óbitos e 3.526 casos confirmados entre servidores (as), com 48 óbitos registrados. No sistema socioeducativo, 296 casos confirmados pelo novo boletim, com zero óbitos e 935 casos confirmados entre os servidores (as), ainda com 11 óbitos, ou seja, sem casos de novos óbitos.

Ainda que a Recomendação nº 62 do CNJ tenha sido uma medida importante para que juízes e juízas fossem sensibilizados a respeito da gravidade do impacto do novo coronavírus às pessoas privadas de liberdade e aos (às) servidores (as) desses sistemas, é bastante triste constatar que em todo Brasil ainda há dezenas de milhares de pessoas que poderiam estar em regimes diversos da privação de liberdade.

Destaca-se, ainda, que milhares de pessoas sequer deveriam estar atrás de grades mesmo no cenário pré-pandemia, como pessoas acusadas de crimes não violentos, mulheres gestante, mães e idosos com problemas de saúde, só para citar alguns exemplos. Contudo, as falhas do sistema de justiça fazem com que essas pessoas acabem permanecendo privadas de liberdade ilegalmente. Com a chegada do vírus ao país, essas ilegalidades cotidianas adquirem caráter de abuso e de desumanidade, já que mais e mais pessoas estarão suscetíveis à contaminação.

O próprio Supremo Tribunal Federal parece não ter compreendido a gravidade da situação, pois os números publicados sobre habeas corpus concedidos pela corte diante da pandemia são irrisórios. De acordo com notícia publicada, dos 1.149 processos relacionados ao impacto do novo coronavírus às pessoas presas, dos quais 881 eram habeas corpus, apenas 15 deles foram concedidos, o que significa tímidos 1,7% do total de pedidos realizados.

Já sabemos que nossas cadeias e unidades socioeducativas são, em sua grande maioria, superlotadas. É sabido também não há direito à saúde nesses locais, seja pela falta de materiais de higiene pessoal e medicamentos, seja em razão da falta de assistência médica dentro desses locais. Nossas prisões, portanto, além de agravarem problemas de saúde já existentes, também contribuem para a proliferação de doenças infecciosas, como a própria Covid-19.

É imprescindível, portanto, que o poder público e os órgãos que compõem o Sistema de Justiça forneçam mais do que dados – o que já é um ótimo começo – mas respostas e medidas efetivas para prevenir que haja uma disseminação alarmante e simultânea da doença no sistema prisional e socioeducativo, se é que ainda temos tempo para isso.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Mariana Chies

É socióloga e advogada. Pesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), é coordenadora-chefe do Departamento de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Leia também