De acordo com o último censo do IBGE, realizado em 2010, nosso país contava com um percentual de afrodescendentes estimado em 54% da população, calculada em cerca de 190 milhões de pessoas.
Já estamos em meados de 2021. No entanto, o Presidente da República, por hábito guiado por convicções e interesses escusos, se recusa a permitir que o IBGE realize o indispensável censo demográfico a ocorrer, de acordo com nossa legislação, no mínimo a cada dez anos.
Para tentar me aproximar de informações relativamente precisas em relação a quantitativos, pesquisei dados através de organizações e ativistas do movimento negro, já que nem a Fundação Palmares, nem qualquer representante do atual governo, revela dados concretos.
Na busca de rastros sobre formação da nossa população e da presença negra nela, considerei os séculos em que praticaram o tráfico dos cerca de quatro milhões e novecentos mil escravizados africanos para o Brasil (The Trans-Atlantic Slave Trade Database), isto é, entre 1531 e 1855. Ao fim desse período, a população brasileira não chegava a dez milhões de habitantes entre africanos, afrodescendentes, brancos e indígenas.
Para tentar projetar minimamente a identidade dos brasileiros contemporâneos, devemos considerar inicialmente o cruzamento de raças que se deu a partir dos homens brancos que tinham por hábito estuprar e engravidar suas escravas ou indígenas e a miscigenação natural entre os descendentes de todas essas etnias. Entretanto não posso deixar de questionar a precisão daqueles que se auto declararam puramente brancos, pretos, indígenas, pardos ou amarelos em nosso país. Por um aspecto, é sabido e visível que a mestiçagem foi generalizada e somente os povos que se mantiveram isolados, ou filhos de imigrantes mais recentes, que ainda não tiveram filhos com os brasileiros de famílias antigas podem acreditar na pureza de seu sangue. Por outro, é inquestionável o racismo estrutural, presente em todos os níveis, que faz com que pessoas medianamente claras se apregoem brancas.
Visando garantir proteção e oportunidades aos brasileiros que há cinco séculos vêm sendo prejudicados e humilhados explicitamente, mesmo depois da abolição da escravatura, da Lei Afonso Arinos, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e outros documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, além da Lei nº 7.716/1989, que define crimes de preconceito de raça ou de cor, compreendeu-se a necessidade de, além de punições, se criar leis afirmativas.
A primeira delas em 2010, a 12.288, com o Estatuto da Igualdade Racial, garantia à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica e religiosa; a 12.711 de 2012 reservava um mínimo de 50% das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas, a serem preenchidas por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à presença desses grupos na população total da unidade da Federação onde fica a instituição; e a 12.990 de 2014 garantia 20% de vagas nos concursos públicos em vários níveis para afrodescendentes.
Em 1988 foi criada a primeira instituição do Governo Federal, dentro do Ministério da Cultura, voltada para promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira: a Fundação Cultural Palmares. Em 2003 foi instituída a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), com status de ministério, visando implantar ações afirmativas ou, mais precisamente, políticas públicas com a finalidade de corrigir desigualdades raciais acumuladas ao longo dos anos.
A atual gestão transformou a SEPPIR numa secretaria vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e colocou para presidir a Fundação Palmares um senhor que, por mais paradoxal que possa parecer, por ser negro, manifesta-se e toma atitudes preconceituosas que, numa situação normal, justificaria processos e condenações por racismo e injuria racial. Não vem ao caso, neste artigo, me estender sobre a natureza de seu caráter, já que nos primeiros escalões deste governo não se sabe de qualquer dirigente com uma postura minimamente equilibrada e humanitária.
Uma das principais finalidades da Fundação Palmares é buscar o reconhecimento daqueles grupos sociais cujos antepassados escravizados e fugidos se organizaram em terras de difícil acesso onde se protegeram, resistiram e sobreviveram no regime escravocrata. Graças a esse isolamento, por séculos foram mantidos os costumes, tradições culturais, alimentação, as práticas de partilha em plantações etc. Por todas as evidências, ao se constatar que aquela comunidade se formou como um quilombo, a Palmares fornece a certificação e, daí em diante o assunto passa para o âmbito do INCRA. Este realiza um trabalho de terreno com antropólogos que buscam objetos, resquícios do passado, informações de vários tipos até que se tenha condições de conferir à comunidade a titulação de território quilombola.
Mas nesses tempos em que intolerância e o preconceito de todos os tipos passaram a ser apregoados pelo presidente da República, seu grupo e seguidores, uma parcela doentia da população deu para copiar tais discursos e atitudes.
O desrespeito e desqualificação de todas as conquistas legais das minorias sociais tornaram-se obsessões para esses tipos organizados no poder, nas milícias e em iniciativas particulares. Os territórios quilombolas, símbolo maior da monstruosidade escravagista e, ao mesmo tempo, símbolo de liberdade dos povos escravizados e seus descendentes, vivem permanentemente ameaçados, da mesma forma que os territórios indígenas. Tanto as certificações da Fundação Palmares, quanto as titulações do INCRA diminuíram drasticamente e, enquanto o primeiro tem retirado certificações já concedidas, a segunda adotou o procedimento de outorgar titulações individuais, o que provoca conflitos entre os quilombolas, na medida em que imediatamente surgem compradores interessados em adquirir terrenos, quebrando, dessa forma, a harmonia da comunidade cuja característica sempre foi, justamente, a posse coletiva do território.
Não tenho dúvidas de que os avanços das minorias sociais, que ostensivamente ocuparam espaços e saíram às ruas exigindo respeito aos seus direitos, resultaram em ódio cego e agressividade das oligarquias.
O descumprimento da Constituição, o medo, a covardia e impunidade reinam. Atualmente, com a pandemia em crescimento, a insistente campanha do governante pelo desrespeito às regras sanitárias preventivas, a insistência em forçar o uso de medicamentos ineficazes e perigosos em relação à Covid-19, assim como a recusa e o atraso na compra de vacinas, comprovam uma política genocida em relação à população, principalmente a mais vulnerável.
A ameaça de golpe por parte do atual presidente é explícita. No entanto, a consciência e o caminho tomado pelos negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, pobres e favelados que assistem seus parentes, vizinhos, colegas e amigos serem humilhados, agredidos e assassinados numa dimensão nunca vista antes, não tem retorno. 1964 também não se repetirá da mesma forma, porque os golpistas de agora revelam um novo perfil. Porém a população desrespeitada, ameaçada, desempregada, desalojada e faminta cresceu em número e na luta que sempre foi sua e que, depois de tantos séculos de opressão, deixa cada dia mais claro que não pretende recuar mais.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ana de Hollanda
É cantora, compositora e ex-Ministra da Cultura. Além do trabalho na música, com cinco discos gravados, Ana estudou artes cênicas, foi atriz, dramaturga e produtora cultural. Foi Coordenadora de Música do Centro Cultural São Paulo, Secretária de Cultura do Município de Osasco, Diretora do Centro de Música da Funarte e vice-Presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
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