A Casa do Estudante da Sanfran: um marco de resistência e permanência estudantil – IREE

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A Casa do Estudante da Sanfran: um marco de resistência e permanência estudantil

Letícia Chagas

Letícia Chagas
Liderança do Movimento Estudantil



Quando fui aprovada no curso de Direito da USP São Paulo, minha primeira preocupação foi em relação ao lugar onde eu iria morar, já que eu vivia no interior. Quando eu e meus pais começamos a procurar locais, logo percebemos que alugar um imóvel significaria comprometer quase que a totalidade da renda de nossa família com isso.

Minha única oportunidade de me mudar para São Paulo e cursar Direito em uma das melhores universidades do país, portanto, foi a Casa do Estudante. A “Casa”, como a carinhosamente denominamos, é um prédio de dez andares situado na Avenida São João que abriga os estudantes de baixa renda da Faculdade de Direito da USP, a “Sanfran”.

Em 2018, quando pleiteei minha vaga na moradia, lembro de antes pesquisar na internet informações sobre a Casa. Surgiram reportagens e vídeos a respeito da situação degradante em que a moradia se encontrava: falta de luz nos corredores, problemas na rede elétrica e hidráulica, infestação de roedores – mesmo sendo um prédio de propriedade do Centro Acadêmico XI de Agosto, uma entidade com patrimônio milionário. Tive medo de viver naquele lugar, mas não havia outra escolha.

Quando passei a viver na Casa, porém, descobri que ela, muito mais do que uma simples moradia, era também um espaço de luta e resistência para dezenas de estudantes. Foi ali onde conheci diversos outros estudantes cotistas e, juntos, desenvolvemos uma amizade e uma prática de solidariedade que permitiu que nossa permanência em uma Faculdade elitista e marcada pelo racismo fosse menos solitária.

Foi ali que eu, uma estudante de escola pública decidida a não me envolver com a política universitária, logo percebi que, para estudantes negros e de baixa renda, a política não era apenas uma escolha: era uma necessidade. Cada conquista que havia possibilitado que eu vivenciasse aquela Faculdade – das cotas ao lugar onde eu morava, dos auxílios estudantis ao valor social que permitiria que estudantes pobres participassem de sua própria formatura –  havia sido fruto da luta estudantil. E os moradores da Casa historicamente foram protagonistas dessas lutas, muitos dos quais sacrificaram anos de suas graduações para garantir que pessoas como eu pudessem estar na Sanfran.

Por isso, em meu segundo ano de graduação fiz parte da luta para que parte do patrimônio do C.A. XI de Agosto fosse utilizado para reformar a Casa do Estudante. Se por muito tempo essa reivindicação parecia impossível, em 2019 ela deu origem a uma das maiores assembleias gerais que se tem notícia na história da Faculdade de Direito da USP. Foi um momento histórico, em que os estudantes da Sanfran reconheceram a importância da permanência estudantil nesse espaço. Todavia, a Casa ainda não possui o valor total para a finalização da reforma e, em breve, será iniciada uma campanha de arrecadação financeira para custear o que falta.

Também em 2019, eu e outros colegas – muitos dos quais moradores da Casa – percebemos que a luta pela permanência estudantil também exigia que ocupássemos espaços de poder dentro da universidade, levando a esses lugares as perspectivas de estudantes negros e periféricos. Por muitos anos, Casa e Centro Acadêmico XI de Agosto pareceram instituições antagônicas: não à toa, por muito tempo a Casa permaneceu em uma situação degradante.

Naquele ano, nossa luta fez com que eu fosse eleita presidente de um dos centros acadêmicos mais antigos do país. Durante a gestão da qual fiz parte, conseguimos uma conquista importantíssima: pela primeira vez, a USP passou a responsabilizar-se pelas finanças da Casa do Estudante, garantindo o pagamento de nossas contas ordinárias, como água e luz.

A Casa do Estudante é um símbolo de resistência. Hoje, na Faculdade de Direito da USP, é impossível falar sobre políticas de permanência e sobre cotas étnico-raciais sem falar sobre ela. Mas ainda há muito o que caminhar para garantir que estudantes de baixa renda tenham uma vida digna nessa universidade.

Exemplo disso é que, atualmente, o auxílio moradia oferecido pela USP é de apenas R$500, um valor que já é baixo para custear aluguéis, que dirá para garantir alimentação e transporte em São Paulo. Não só isso, é preciso que a universidade também garanta permanência subjetiva, promovendo a contratação de mais professores negros e indígenas e mudanças curriculares que permitam que outras epistemologias – que não só as europeias dominantes – sejam parte da universidade.

E para essas e muitas outras lutas, é necessário que estudantes de baixa renda sejam protagonistas. Hoje, em meu último ano de graduação, escrevo esse texto de um apartamento reformado da Casa do Estudante. Um apartamento que é a materialização de uma luta coletiva. Só a luta é capaz de mudar a nossa realidade e democratizar as universidades públicas brasileiras.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Letícia Chagas

Graduanda em Direito na USP, foi a primeira presidente negra do Centro Acadêmico XI de Agosto (2020-2021) e pesquisadora do Programa de Educação Tutorial (PET) Sociologia Jurídica. Atualmente, é coordenadora de pesquisa do Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA).

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