Com cada vez mais frequência, nos bastidores dos posts bem resolvidos das redes, temos ouvido amigos e conhecidos reclamarem de uma pressão interna e crescente para que performem online sua atuação profissional e construam uma reputação que seja capaz de aumentar a sua empregabilidade. Reféns de contratos temporários e assombrados pela fantasia da invisibilidade, a demanda por produzir conteúdo já não nos parece tão despretensiosa assim.
Especialmente no que tange ao setor cultural, não é novidade que seguimos enfrentando progressivos cortes de investimento, não só por conta da crise econômica mas sobretudo por uma falta de diálogo com o governo federal, que entende a “cultura” como inimiga ideológica. Com a pandemia, o cenário ficou ainda mais grave, e produção e consumo se deslocaram com intensidade para o meio digital. De repente, uma palestra que era assistida por trinta pessoas passou a alcançar mais de mil, um pocket show quintuplicou seu número de espectadores, os cursos agora contemplam gente de toda parte.
A questão do “público”, que ora ou outra aparecia como pauta delicada para o setor, viu-se inflacionada graças ao alcance sem limites da internet, caso você saiba jogar bem o jogo. Mas apesar de traçarmos múltiplas conexões, fabricarmos uma sequência veloz de produtos e alcançarmos um nível de comunicação inédito, não é raro nos sentirmos sozinhos. Resta um sentimento esquisito no ar, o de que estamos sempre em falta com alguma outra coisa, já que maximização e precariedade do trabalho são instâncias que caminham juntas.
Sabemos que essa história não é exatamente nova, e vem se consolidando num contexto pós-fordista de grande ascensão neoliberal, cujo uso de tecnologias de comunicação em rede é radicalmente acentuado. Neste entremeio, o próprio trabalhador cultural tornou-se o modelo para o capitalismo do século XXI: criativo, independente, flexível e que se auto explora com a promessa da visibilidade. Nas redes, porém, os limites entre o que é ou não publicidade são cada vez mais turvos (bem como autocuidado e narcisismo, entre outros binômios).
O trabalhador cultural, ao depender da plataforma para engajar seu público, manter relações e vislumbrar novos trabalhos, acaba entrando na lógica do “self-banding”, moldando-se a si próprio enquanto produto vendável no mercado. Se o trabalho flexível no campo cultural já exigia que o artista fosse uma espécie de “empresa de si mesmo”, as redes sociais intensificaram o processo de “blogueirização”, exigindo cada vez mais autopromoção e superexposição.
Vejamos a lógica: o blogueiro performa a própria vida enquanto imagem; é aquele que é capaz de mercantilizar a sua própria sociabilidade. Para ele, é como se a experiência tivesse enquanto finalidade a produção de seu próprio registro, e não o contrário, de modo que o real seja compreendido como o que é fotografável e/ou filmável. Apesar de atuar para a câmera, porém, ele se dedica para que a selfie na praia soe relaxada e espontânea, sem grandes esforços. Afinal, sua popularidade é erigida em torno de noções como singularidade e empatia. Se algo parecer editado ou trabalhado demais, estará mais associado ao fake do que ao conteúdo autêntico. Não à toa, influencers se esforçam para conciliar as imagens super produzidas das campanhas de publicidade com os stories supostamente desleixados, sem maquiagem ou logo após acordar. É o modo de negociar identificação (“ele é como um de nós”, “é gente como a gente”) com a condição de semi-celebridade. O que não se vê, porém, é que a sensação de espontaneidade implica horas de trabalho incessante que ocorre nos bastidores da glamourosa autopromoção.
Evidentemente, performar a própria vida não é exclusividade da blogueiragem; nós fazemos isso a todo tempo em diferentes níveis. Não existe construção de identidade sem performatividade, mas o trabalho plataformizado exige uma performance ostensiva, de modo que produção e pós-produção, trabalho e documentação do trabalho, tornam-se etapas quase indistintas. Como se pode imaginar, há uma série de consequências decorrentes dessa postura. A constante ameaça de invisibilidade produzida pela plataforma intensifica e acelera a produtividade, no intuito de que nos tornemos “algoritmicamente reconhecíveis”, para usar uma expressão de Tarleton Gillespie.
A rede entrega uma falsa autonomia, pois se parece aproximar produtores e receptores, nos faz atuar em uma infraestrutura que não podemos intervir ou direcionar, embora oriente ativamente o modo como produzimos. A atividade online também se converteu numa espécie de atestado da experiência. Se algo não é postado, sua atividade parece não ter sido validada, o que produz uma cadeia de superexposição. Junto a isso, o temor em publicar algo que “queime o filme” do usuário e diminua sua empregabilidade gera culpa e auto-vigilância (além de exigir uma unidade do “eu” que não condiz com a “vida real”). E se o que está em jogo é uma disputa de atenção, não é raro notar uma competitividade elevada nesses círculos — como cada um se torna seu próprio centro das atenções, há mais narcisismo e menos articulação coletiva.
É inequívoco, porém, que a temporalidade da plataforma não acompanha o tempo da produção subjetiva, artística, cultural ou como prefiram chamar. Se a ausência de uma estrutura temporal definida para o trabalho poderia soar como uma vantagem, ela foi convertida em intensificação da produção, pois o que tal arquitetura incita é que sejamos uma máquina de notícias e novidades. Daí, assistimos uma escalada de frustração e ansiedade, tanto daqueles que não conseguem se adaptar, quanto daqueles que se veem conformados por uma experiência precária de recepção e participação. Acelerar a produtividade é necessariamente estressar nossos sistemas de operação, o que inclui nossas emoções, nossa atenção, nossa memória e nossa imaginação.
A blogueirização do trabalhador cultural é ambígua. Tal qual a ideologia neoliberal, o Instagram promete liberdade e autonomia, mas entrega instabilidade e desgaste psicológico. O “empoderamento” do trabalhador vem necessariamente junto de sua auto exploração; alienação e realização se confundem. Ganha-se em alcance temporário, perde-se em qualidade de vida e produção de consistência.
Há menos de um mês, o Instagram anunciou que a plataforma passará a dar prioridade a vídeos que geram entretenimento, um modo de competir de maneira mais agressiva com o TikTok, o app chinês que explodiu durante a pandemia. Segundo pesquisas recentes, o que as pessoas têm buscado nas redes não é tanto narrativa ou personalidade, mas momentos de eloquência audiovisual.
Mas na medida que há pouquíssima margem de negociação com a infraestrutura dos apps, pergunto-me de que modo esses formatos afetarão a produção artística a médio e longo prazo, para bem e para mal. Sabemos que, para um conteúdo ser de fato visto, ele precisa nos capturar rapidamente e, de preferência, produzir reações emocionais. Posts devem ser produtos de assimilação instantânea, capital informativo. Se essas plataformas tiveram um papel importante de descentralização do discurso e abriram espaço para a emergência de subjetividades até então silenciadas e marginalizadas, elas também nos obrigam a falar de uma determinada maneira.
É assim que os conteúdos em geral são lidos na chave da afetação: imagens fortes que precisam impactar ao ponto de gerarem compartilhamentos e reposts rápidos, como na lógica do meme. Daí temos acompanhado mudanças como a prevalência do single em detrimento do álbum, no caso da música; ou a imagem espetacular e disruptiva em detrimento de uma experiência mais ambígua, no caso das artes visuais, e por aí vai.
Enquanto “cognitariado”, como cunhou Bifo Berardi, ou buscaremos negociar de maneira mais crítica com a estrutura dessas plataformas — estabelecendo uma rede para além delas, revendo os limites de intervenção dos usuários e lutando por uma regulamentação mais saudável — ou nos veremos cada vez mais condicionados. Celebremos sim as múltiplas possibilidades de conexão, mas que não nos falte o tempo do corpo.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Pollyana Quintella
É pesquisadora, curadora e crítica cultural. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e doutoranda pela mesma instituição. Colabora com o Museu de Arte do Rio (MAR) desde 2018 na área de pesquisa e curadoria e escreve regularmente para diversos jornais e revistas de cultura.
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