A asfixia social da pessoa negra no Brasil e no mundo – IREE

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A asfixia social da pessoa negra no Brasil e no mundo

Silvia Souza

Silvia Souza
Advogada



I can’t breathe” (“Eu não consigo respirar”, em português), a gélida frase pronunciada com dificuldade pela sufocada voz de George Floyd, homem negro americano, enquanto um policial branco exprimia-lhe o pescoço com o joelho tirando-lhe a vida, tornou-se palavra de ordem nos protestos antirracistas realizados nos Estados Unidos, Brasil e mundo afora.

– “Eu não consigo respirar” faz tempo!

Infelizmente Floyd não foi o primeiro e nem será o último. Em 2014, o jovem negro Eric Garner foi morto pela polícia de Nova York em situação semelhante e, antes de ver sua vida se esvaindo pelas mãos de um policial branco, repetiu a mesma frase 11 vezes.

– “Eu não consigo respirar” faz tempo!

A realidade no Brasil não é diferente. Um país alicerçado no racismo e na escravização de pessoas negras não deixaria de ter uma política de segurança que faz dos camburões e das prisões verdadeiros tumbeiros lotados de negros e negras. É fato público e notório que a necropolítica de segurança pública brasileira é especialmente endereçada à população negra com requintes de crueldade dissimulados em protocolos de segurança que, quando não traz no calibre da 762 (e outras armas utilizadas pelas forças de segurança) a sentença de morte assinada pelo Estado, traz a voz de prisão calcada no estereótipo convenientemente criado do negro marginal.

– “Eu não consigo respirar” faz tempo!

Há de se observar que as mortes de pessoas negras no Brasil só ganham espaço na mídia e geram comoção social quando se trata de crianças ou adolescentes em fase inicial, a exemplo dos tristes casos da menina Agatha e do garoto João Pedro. Porém, quando são jovens, em especial homens negros, ocorre justamente o contrário. Há um estranho sentimento coletivo de pseudo-justiça acompanhado por justificativas baseadas em suspeições estereotipadas de que “vai ver era bandido mesmo”, o que legitima no senso comum a pena de morte, inexistente na letra da lei, mas dada pelo aparato armado do Estado antes mesmo da instalação de qualquer processo-crime.

– “Eu não consigo respirar” faz tempo!

Os números apresentados no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre os Homicídios de Jovens e Negros revelam que mais da metade (53,3%) dos 52.198 mortos por homicídios em 2011 eram jovens, dos quais 71,44% eram negros (pretos e pardos) e 93,03% do sexo masculino. O relatório demonstrou ainda que a chance e uma pessoa negra ser morta em uma ação policial é 3,7 vezes maior do que a de uma pessoa branca, escancarando racismo institucionalizado nas forças de segurança.

– “Eu não consigo respirar” faz tempo!

Nós, negros e negras no Brasil, não conseguimos respirar sem sobressaltos há muito tempo. Outrora estávamos relegados à vida de cativos capturados e trazidos de África como se animais fôssemos, aos porões fétidos e úmidos dos navios negreiros, às chibata no lombo, às torturas, à escravidão e à morte precoce. Hoje é o aparato estatal milimetricamente engendrado para nos capturar, prender, explorar, torturar e matar que nos atormenta e constantemente retira-nos a capacidade de respirar.

– “Eu não consigo respirar” faz tempo!

O Atlas da violência de 2019, do Ipea, revelou que, em 2017, dos 65.602 homicídios ocorridos, 75,5% das vítimas foram pessoas negras, sendo 35.783 jovens entre 15 e 29 anos, um dado alarmante que aponta para aquilo que a pesquisa corretamente classifica como “juventude perdida”.

Segundo o Ipea, a taxa de mortes de negros cresceu 33,1% no período de 2007 a 2017. Já a de não negros apresentou um aumento de 3,3%. Analisando apenas a variação no último ano, enquanto a taxa de mortes de não negros apresentou relativa estabilidade, com redução de 0,3%, a de negros cresceu 7,2%, revelando uma desigualdade racial violenta no que tange à letalidade, onde os jovens negros figuram como protagonistas.

– “Eu não consigo respirar” faz tempo!

Os dados só comprovam que nossa respiração vem sendo asfixiada lentamente há muito tempo, pelo medo de receber um telefonema com uma notícia fatal a qualquer hora do dia, pelo frio na espinha quando nos deparamos com uma viatura policial, pelo receio de andar na rua à noite, pelo constrangimento de quem nos vê e atravessa a rua.

Além dos protocolos de segurança que nos auto-impomos ao sair de casa, ensinados pelos velhos e repassado aos mais novos: “não esqueça a identidade”, “leve a carteira de trabalho”, “não saia de chinelo”, “não mexa na bolsa quando estiver dentro de uma loja”, “não encare o segurança do shopping e nem coloque a mão no bolso”, “se a polícia te abordar, não retruque e nem provoque, apenas reze” e, se conseguir voltar pra casa, “não chegue tarde da noite”.

– “Eu não consigo respirar” faz tempo!

Essas orientações desvelam a asfixia social decorrente do racismo experienciado pelo negro no Brasil e revelam o sufocamento social e racial que por vezes eleva nossa pressão arterial e faz disparar o coração, exigindo tremendos esforços físico e mental para desenvolver e articular estratégias de sobrevivências que exigem micro e macro ações e constante estado de alerta e vigilância.

A asfixia social em razão do pertencimento étnico-racial experimentada pelos negros e pelas negras no Brasil vai além da asfixia física relatada no início do texto, recorrente nas abordagens policiais. A asfixia permeia todas as camadas e dimensões existenciais da vida negra, sendo ao mesmo tempo imperativa de enfrentamento e impeditiva de sossego, tranquilidade, paz de espírito, realização de outros sonhos e projetos, já que grande parte do tempo de vida, esforços intelectuais, físicos e mentais são despendidos para desenvolver táticas e artifícios de sobrevivência.

As manifestações antirracistas pós-morte de Floyd ocorridas no Brasil, nos EUA e em outros países com a tomada de ruas, incêndios de prédios, derrubada de símbolos racistas, gritos ensurdecedores de palavras de ordem, expulsam para o mundo a asfixia social vivenciada pelas vidas negras no Brasil e no mundo em diferentes contextos.

Acabou a era da conveniência e do silêncio dos brancos enquanto seus joelhos esmagam nossos pescoços e as palavras saem silenciadas. Não há mais espaço para não ser antirracista, não cabe mais a desculpa de “eu não sou negro, então não posso falar sobre isso”. Vivemos um ponto de inflexão na história da luta antirracista que deve ser perene e exige de todos uma tomada de posição, a escolha de um lado.

Ficamos com a dúvida esperançosa (ou a esperança duvidosa): Vamos conseguir respirar, afinal?



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Silvia Souza

É advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho e pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e Violências pela UFABC. É assessora jurídica/legislativa na Câmara Legislativa do Distrito Federal e coordenadora adjunta do Departamento de Assuntos Antidiscriminatórios do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Especialista em advocacy no Congresso Nacional.

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