Da tribuna do Senado, em 14 de março de 1985, José Sarney proferiu seu discurso de despedida do Parlamento para assumir a vice-Presidência da República ao lado de Tancredo Neves, vitoriosos no último Colégio Eleitoral realizado na ditadura. Aproveitou o pronunciamento para representar, pela quarta vez, um antigo projeto de lei de incentivo à cultura. Em linhas gerais, seu escopo era possibilitar ao setor privado investir em eventos culturais mediante dedução no imposto de renda, em regime de favor fiscal.
Desde 1972, no seu primeiro mandato de senador, Sarney, escritor por vocação, tentava aprovar um projeto de incentivo à cultura, inviável no contexto do regime militar. Sucederam-se, nos anos seguintes, outras quatro iniciativas similares, todas infrutíferas. Em 1986, já Presidente da República, promulgou a Lei 7.505, disciplinando a matéria. Em essência, a denominada Lei Sarney já continha as mesmas normas fiscais da Lei 8.313, editada em 1991 a partir do texto elaborado pelo secretário de cultura do presidente Fernando Collor, o embaixador Sérgio Paulo Rouanet.
Personagem ubíquo da vida nacional, ao mesmo tempo político influente durante os governos militares e destacado articulador da transição entre a ditadura e a democracia, Sarney por vezes não tem o devido reconhecimento pelo difícil e delicado papel que a contingência histórica lhe reservou. Primeiro, por ter rompido com o general Figueiredo e com o partido do governo, o PDS, do qual era presidente, nos estertores do regime militar. Integrou a Aliança Democrática e disputou as eleições indiretas ao lado de Tancredo, pelo oposicionista MDB.
Segundo, por ter ocupado com sabedoria e cautela a cadeira de Presidente herdada em decorrência da morte de seu legítimo titular, poucos dias após a eleição. Honrou o ministério nomeado por Tancredo, inclusive o da Cultura, e cumpriu o programa de governo do MDB sob a sombra de Ulisses Guimarães, o senhor Diretas-já. Regina Echeverria, autora da biografia de Sarney, afirma que seu maior desafio era manter-se no poder e legitimar-se nele, no que se houve com razoável sucesso, conduzindo o país com serenidade ao reencontro da normalidade democrática.

Estátua de Johann Sebastian Bach
Terceiro, por ser o precursor da lei brasileira de incentivo à cultura. Revogada por Collor no início de seu governo, juntamente com a extinção de instituições culturais, confisco da poupança e demissão em massa de servidores públicos, o texto de lei elaborado em 1991 pelo embaixador Rouanet é a repristinação do regramento fiscal inaugurado pela Lei Sarney, quatro anos antes. Já o presidente Itamar Franco, vice de Collor, e que o sucedeu em decorrência do processo de impeachment, fez publicar, em seguida, a Lei 8.685/93 de incentivo à atividade audiovisual, denominada Lei Itamar. O gesto pioneiro do ano de 1972 instaurara essa relação de causalidade.
Há poucos dias, a Funarte, subordinada à Secretaria de Cultura do Ministério do Turismo, negou os benefícios da Lei Rouanet aos organizadores do Festival de Jazz do Capão, realizado na região da Chapada Diamantina, na Bahia. Entendeu que os recursos seriam destinados a atividades ideológicas e que o objetivo maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma, frase atribuída ao genial compositor alemão Johann Sebastian Bach. Chega a ser cômico imaginar como ocorreriam as tertúlias ideológicas em palcos de música instrumental improvisada, no amplo espectro do conceito de jazz, na contemporaneidade.
Quanto ao adágio de Bach, interpretado pela Funarte em seu tom menor, poderia ser mais bem contextualizado na própria obra do Cantor de Leipzig, responsável por vasta produção de música litúrgica, na qual se destaca o Oratório Segundo São Matheus. Não obstante, tão ou mais importantes do que as peças compostas para os serviços da Igreja, suas obras de câmara e, didáticas, sem explícito conteúdo religioso, são consideradas páginas intransponíveis da literatura musical de todos os tempos. O Cravo Bem Temperado é a bíblia dos pianistas. O sentido maior do adágio parecer ser o contrário daquele alcançado pela Funarte: para Bach toda produção musical é uma forma de glorificação d’Ele.
Sarney e Itamar foram presidentes da República engajados na causa cultural. Autores de leis de incentivo, ambos ascenderam ao cargo a partir da vice-presidência, em circunstâncias críticas da vida nacional, e encontraram arrimo em nossas mais caras tradições. Atento aos precedentes, um governo que acumula representações criminais na PGR e pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados poderia ser mais cauteloso na condução dos assuntos da Cultura, sob pena de conhecer, nas piores circunstâncias, toda a complexidade de “A Arte da Fuga”.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Antonio Carlos Bigonha
É compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).
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