Esta é minha 17ª crônica para o IREE. Não consigo achar um tema melhor, então resolvi compilar alguns pensamentos soltos sobre a maior conquista deste “governo”. Não tem graça, infelizmente.
Tenho pensado muito na pobreza. Sempre fui pobre, mas pobre light, classe média baixa. Nunca passei fome, sempre tive um teto, então num país como o Brasil eu acho que sou é rico. Lembro de uma vez em que, na feira da minha rua, duas meninas passavam. Uma apontou para o prédio alto e disse: essa casa deve ter muitos quartos!
Não entendi direito até que me dei conta que a unidade habitacional de referência dela era um quarto, não uma casa. E eu, que achava meu apartamento pequeno, passei a me achar um palaciano. Tive um conhecido que, um dia, vi dormindo na rua. Passei direto, e depois não consegui dormir. Que diabo de cristão eu era que deixava uma pessoa conhecida dormindo na rua? No meio da madrugada saí procurando por ele, sem encontrar. Me senti um ENORME pedaço de bosta, até que o encontrei no dia seguinte, e pude ajudar de alguma forma, não vem ao caso aqui dar detalhes. Mas eu senti, na pele, como é fácil ser indiferente. Penso duas vezes antes de julgar as pessoas. Mas ando assustado com o que vejo.
As ruas do Rio de Janeiro estão cheias. Gente desesperada, gente com fome, gente que perdeu tudo. Depois de passar alguns anos achando que a fome no país tinha sido devidamente encaminhada para seu fim, vejo esse cenário pós apocalíptico. Quem colocou essa criatura no poder prefere acreditar que a culpa é da pandemia. Paciência, não posso obrigar ninguém a pensar. Sempre aprendi que ter a consciência limpa garante o sono dos justos, mas isso não me ajuda em nada. O sono é ruim, ter qualquer consciência impede a felicidade. Então a gente sai pelas ruas desviando de sofrimento e fingindo sociopatia, pela indiferença forçada.
Não tenho ideia do que seja não saber de onde virá a próxima refeição. Acho extraordinário que pessoas – como Boulos e o Padre Julio Lancelotti – dediquem sua vida a eles. Chico Xavier também, ele distribuía alimentos em sua cidade, dizia que não bastava alimentar a alma, o corpo precisava aguentar. Divaldo Franco cuidou de milhares de crianças, lamentavelmente andou tomando posições meio esquisitas – mas que não destroem o brilho do que fez.
Ou seja, pessoas salvam pessoas. Não podemos esperar ajuda do céu, rezar ajuda, dá ânimo, mas não mata a fome. E você que me lê certamente já sentiu fome, por uma ou duas horas. Vá lá, um dia inteiro. Imagine sentir isso por semanas. E, pior, isso ao relento, tentando achar um lugar seco e encontrar igrejas e templos fechados, pedregulhos debaixo de viadutos, ferros pontiagudos debaixo de marquises. Sim, imagine estar no mais baixo degrau da pobreza e saber que ninguém te quer. Imagine ter que dormir – ou nascer! – numa manjedoura…
A gente sempre pode fazer um pouquinho. Nunca tivemos dinheiro, mas sempre fizemos o que podíamos. Por exemplo, minha mãe sempre deu roupas usadas em perfeitas condições. Nas raras situações em que a roupa estava em má condição, nunca jogou uma peça fora que estivesse suja. Por mais rota que estivesse, ela lavava, passava e colocava num saquinho, separado do lixo, para o caso de alguém muito necessitado pegar. Uma amiga trabalhava num projeto social. Um dia, distribuindo alimentos, uma pessoa não quis receber o arroz, parboilizado. Disse que não gostava. Ela começou a se indignar quando a chefe do projeto apareceu e se certificou que houvesse o arroz desejado. E explicou: eles não são obrigados a aceitar qualquer coisa. E é a mais pura verdade.
Vinícius e Chico colocaram letra em “Gente Humilde”, de Garoto, e ao descreverem uma casa de subúrbio, disseram:
“E na fachada escrito em cima que é um lar”. Isso remete a um hábito do início do século XX, em que algumas casas tinham na frente a inscrição “Lar dos Silva” ou “Lar dos Pereira”. Era uma forma do dono, orgulhoso, demonstrar que aquela casa tinha sido feita para ele, para mais ninguém. É do ser humano essa necessidade de fincar bandeiras marcando posse.
Pois outro dia vi um pequeno acampamento, debaixo de uma ponte que, por sorte, era “habitável”. Algumas roupas enroladas num saco, outro saco com objetos diversos, e no canto um caixote sobre o outro, com uma mesa posta. Um pano, sobre ele um prato, um garfo ao lado, um copo, e numa latinha uma rosa.
Talvez sua “casa” fosse desmanchada pela prefeitura antes mesmo da rosa morrer, mas por alguns instantes aquela era sua casa, e aquela rosa dizia que ali era um lar.
Dedicado a Janaina, que viu a rosa, e ao Padre Julio, que poderia tê-la posto lá.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ricardo Dias
Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.
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